Apesar da crise em suas maiores economias, o mercado do bloco sustenta uma indústria de veículos nos padrões atuais
Desde o primeiro turno das eleições para presidente da República, uma preocupação me assombra: o que será feito do Mercosul? Durante a campanha, o então candidato e hoje presidente dizia: “O Mercosul está morto, só falta enterrar”. Sim, os acordos bilaterais eram a tônica do discurso. Depois da posse, porém, comemorou-se um acordo entre o Mercosul e a União Europeia envolvendo automóveis. Até mesmo acenou-se com a possibilidade da constituição de uma moeda única para o bloco econômico, o que se mostrou ser um passo muito mais adiante, tamanhas são as diferenças de índice de inflação e a disparidade na política cambial entre seus membros.
Como se isso não bastasse, há diferenças gritantes de orientação ideológica entre os membros do bloco, que redundam em diferenças de política tributária e põem por terra a unidade fiscal entre os países-membros. Na verdade, as diferenças ideológicas sempre existiram, quem quer que estivesse no poder lá ou aqui. Apesar disso, medidas que consolidam o bloco econômico são tomadas ao mesmo tempo em que o discurso separatista continua na mídia.
A pergunta maior é se cada um dos países do Mercosul, em separado, conseguiria atrair investimentos num mundo em que a escala de produção tornou-se tão importante
Bom exemplo disso foi o recente acordo no âmbito policial, que permite que suspeitos sejam perseguidos e capturados em até 1 km dentro do território de outro participante do bloco — o que inibirá significativamente, entre outros crimes, o roubo e o furto de automóveis. Nesta quarta-feira (13), no almoço de abertura do encontro do BRICS, cuja participação também esteve em xeque na mudança de governo, o presidente e o ministro da Economia comemoraram a participação do Brasil em blocos de comércio, citando e enaltecendo o Mercosul. Ao mesmo tempo, o presidente brasileiro infirmou não ir à posse de seu novo companheiro argentino e até chegou, num comunicado efêmero, a afirmar que Honda e MWM deixariam o país vizinho por questões políticas, o que foi desmentido pelas indústrias citadas.
Não resta dúvida de que os automóveis são o motor da integração, seja em produtos acabados, seja em suprimentos, tanto em bens como em serviços. A General Motors deixou de ser GM Brasil para ser GM Mercosul, enquanto a MWM adotou “América do Sul” em seu nome. A pergunta maior é se cada um dos países, separadamente, conseguiria atrair investimentos num mundo em que a escala de produção requerida tornou-se mais importante do que os custos de transporte.
O Mercosul passa por uma condição muito particular, em que suas três maiores economias — Brasil, Argentina e Venezuela — vivem crises econômicas inauditas. A terceira maior economia está suspensa do bloco por questões políticas, cujo mérito não é tema da coluna, assim como não são as causas das crises nos dois outros países. O que interessa é entender como os empresários veem o bloco. Para isso, a tabela abaixo tenta mensurar qual seria o tamanho do mercado de veículos automotores, bem como a renda em paridade do poder de compra, caso todos os países tivessem o mesmo desempenho econômico.
Para a renda usaram-se dados do Banco Mundial e, para o tamanho do mercado de automóveis, dados da Organisation Internationale des Constructeurs d’Automobiles (OICA). O método empregado para a renda foi o de tomar os valores do ano anterior ao início da crise em cada um dos três países, trazendo-os para o presente pela média do crescimento do PIB PPC (Produto Interno Bruto em paridade de poder de compra) mundial, também via Banco Mundial. Já para o mercado de automóveis, utilitários e veículos comerciais, tomou-se o ano de mais alto desempenho de cada um dos países, trazidos para o presente pela média mundial descontada a China, conforme apurado em artigo anterior.
País | Renda em US$ bilhões | Mercado de automóveis em unidades | ||
PIB atual | PIB potencial | Atual | Potencial | |
Brasil | 3.388,962 | 4.009,053 | 2.468.464 | 4.367.414 |
Argentina | 959,528 | 1.308,654 | 773.641 | 1.117.444 |
Venezuela | 330,984 | 451,413 | 2.078 | 428.134 |
Bolívia | 88,866 | 88,866 | 34.000 | 34.000 |
Uruguai | 82,641 | 82,641 | 44.215 | 44.215 |
Paraguai | 72,999 | 72,999 | 44.215 | 44.215 |
Total | 4.923,980 | 6.013,626 | 3.366.613 | 6.035.422 |
Fontes: Banco Mundial e OICA |
O resultado foi muito coerente. Em condições normais de temperatura e pressão — mais de pressão do que de temperatura — o PIB PPC seria de pouco mais de US$ 6 trilhões, contra US$ 4,9 trilhões de 2018, que é o ano-base do estudo. Esse valor deixa o Mercosul à frente do Japão (US$ 5,5 trilhões) em PIB PPC, ficando atrás somente da Índia (US$ 10,5 trilhões), dos Estados Unidos (US$ 20,5 trilhões) e da China (US$ 25,4 trilhões).
O mercado de automóveis seria quase o dobro, passando de cerca de 3,3 milhões de unidades para algo como 6 milhões, que deve refletir a expectativa dos investidores. Esse número deixa o bloco na terceira posição em consumo de veículos, atrás somente dos EUA e da China. Observe-se que veículos refletem, em termos microeconômicos, duas categorias: bens de capital, para utilitários e veículos comerciais, e bens superiores, para os de passeio. Há uma área cinzenta entre utilitários e de passeio, mas não altera a alta elasticidade-renda demonstrada pelo comportamento dos números na tabela.
Tudo indica que a mudança de razão social da GM e da MWM não seja em vão. Os números mostram claramente duas coisas. A primeira — e mais importante — é que o mercado do Mercosul sustenta uma indústria de veículos nos padrões atuais, ao contrário do que aconteceu com o Chile e a Austrália, mas individualmente a Argentina estaria fora do mercado. A segunda é que as negociações precisam ser feitas entre blocos, como Mercosul x União Europeia, pois em negociações bilaterais absolutamente todos seriam engolidos.
Pelos números, ao se manter produzindo bens de alto valor agregado, o bloco não tem a menor chance de êxito em âmbito mundial se não for isso mesmo, um bloco. Isso contraria as falas de Ricardo Semler nos anos 1990, quando o empresário e investidor taxava o Mercosul de El bloco de los pobrecitos.
* O PIB PPC, ou Produto Interno Bruto em paridade de poder de compra, procura evitar as variações cambiais e comparar países de fato. Ele parte de uma cesta de produtos consumidos no mundo inteiro e compara o peso deles em relação ao PIB de cada país, transformando em um índice que é multiplicado pelo PIB nominal. Disso resulta um valor que desconsidera tanto a taxa de câmbio como a diferença de valor relativo. O PIB do Japão PPC, por exemplo, é menor do que o nominal, ao contrário do brasileiro, cujo valor nominal é bem menor que o PPC.
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