Alguns propõem que o real perca valor para fomentar exportações, mas a moeda reflete a confiança em um país
Li algumas matérias sobre o Rota 2030, o novo programa de modernização de nossa indústria automobilística. Quase todas elas citavam as exportações como meio de preencher o espaço vazio, também conhecido por capacidade ociosa, deixado pela crise por que passamos. Alguns propunham a desvalorização de nossa moeda como meio de atingir positivamente o mercado externo.
Quando ouço coisas assim fico muito preocupado, porque a moeda é o reflexo da confiança que o mundo põe em um dado país. Não há como uma empresa ser sólida sem que suas ações se valorizem até se transformarem em verdadeiros blue chips. Da mesma forma, não há como um país desenvolver-se e tornar-se referência mundial sem que sua moeda se valorize. Mesmo a China já está cedendo ao fato de que não dá para continuar seu caminho sem que o yuan suba em relação às demais moedas do mundo. Apostar no enfraquecimento do real como passo para o desenvolvimento parece-me um contrassenso.
Ninguém vai passar o dia escovando os dentes se a pasta for gratuita: quanto menor for o preço do bem, mais inelástico ele se torna sob qualquer aspecto
Fiquei estarrecido com o fato de que se insiste num modelo que não deu certo nos anos 1980. O que será que leva pretensos consultores a fazer vaticínios tão categóricos? Será que são minimamente versados em Economia Internacional? E em História? Na década perdida, exportar era imprescindível porque a crise era cambial, muito diferente do cenário que temos hoje. Mesmo correndo o risco de parecer repetitivo em algum momento, resolvi analisar cuidadosamente o papel da moeda nas exportações. Antes precisamos rever alguns conceitos sobre os quais já falei aqui ou ali. Por questões de facilidade, todos os valores que aqui se imaginam são líquidos, ou seja, desconsiderando-se os impostos.
O primeiro é o conceito de elasticidade-preço da demanda. Elasticidade é a variação percentual da quantidade demandada que pode ocorrer em função da renda ou do preço. No primeiro caso, fixa-se o preço e mede-se o quanto a quantidade consumida cresce para cada unidade monetária acrescida à renda do consumidor. A segunda é medida pela variação consumida perante a variação do preço, mantendo-se a renda constante. Como a renda altera-se muito lentamente, é bem mais fácil medir a segunda que a primeira — mas, conceitualmente, ambas têm a mesma importância.
Ninguém vai passar o dia escovando os dentes se a pasta for gratuita. Em outras palavras, quanto menor for o preço do bem, mais inelástico ele se torna sob qualquer aspecto. Assim sendo, as guerras de preço estancam-se a partir do momento em que uma queda no valor de venda fica menor que o aumento na quantidade vendida, porque a contribuição total, supondo-se custos constantes, começa a cair.
Numericamente, basta imaginar que um carro valha R$ 100 mil e que sua margem seja de 23%: sua contribuição unitária será de R$ 23 mil. Se o fabricante der um desconto de 10%, o preço cairá para R$ 90 mil e a contribuição para R$ 13 mil; portanto, será preciso que a quantidade vendida suba 77% para manter a contribuição total. Mas será que um desconto de 10% provoca uma variação tão grande na quantidade vendida? Tudo leva a crer que não.
O exportador sai perdendo
Quem defende a desvalorização da moeda acredita que os custos em moeda local permaneçam constantes. Nessa hipótese, a margem de contribuição será mantida e as vendas aumentadas, ao passo que a contribuição total será elevada, mas em moeda mais fraca. Isso está longe de agradar ao investidor externo, a não ser que ele exporte a preço de custo e aufira todo o lucro no país de destino; portanto, em moeda mais forte. Fica claro que o país exportador sairá perdendo com essa prática.
Ocorre que os custos não são constantes, porque uma parcela significativa dos componentes é importada e está sujeita ao câmbio. Assim, a desvalorização da moeda só mantém os custos constantes enquanto durarem os estoques de peças — e somente se o fabricante não custear seus produtos a preço de reposição. Suponhamos que, depois do programa Inovar-Auto, o índice de nacionalização seja de 52% para o carro ser considerado nacional: 48% de seus componentes serão importados.
Suponhamos agora que a mão de obra represente 3% dos custos, e os demais insumos, 20%. Uma desvalorização cambial de 10% vai reduzir o custo do automóvel em 6,3% em moeda forte, ou seja, o mercado interno será menor por dois motivos: queda na renda do consumidor e aumento dos custos em moeda fraca, que ensejam um aumento no anseio por exportar.
Com a desvalorização cambial, a parcela de bens sofisticados exportáveis cai, o que limita as vendas ao resto do mundo: recai-se em medidas protecionistas
Resta saber se o mercado externo quer consumir nossos produtos. Como concordamos que o consumo seja função da renda, o mercado externo será tão maior quanto mais alta for a renda no resto do mundo. Além disso, quanto maior ela for, maior será a demanda por bens mais sofisticados, porque a parcela da renda destinada à manutenção da vida torna-se menor. A competição por preço fica menos importante, enquanto a qualidade passa a pesar mais nas decisões do consumidor.
Isso anula o efeito da desvalorização cambial, que acaba somente deixando o país exportador à mercê de novas desvalorizações para se manter competitivo por preço no mercado mundial. Na medida em que a moeda local se desvaloriza e os agentes econômicos baseiam-se em moedas fortes estrangeiras, a inflação sobe e isso leva o governo a tomar medidas anti-inflacionárias, como aumentar a taxa de juros, o que estagna a economia local.
Há uma consequência ainda mais negativa. Empobrecendo-se o mercado interno via desvalorização cambial, a parcela de bens sofisticados exportáveis cai, o que limita as vendas ao resto do mundo. Nesse caso, a solução para manter o mercado interno cativo passa pelas medidas protecionistas que levaram o Brasil a proibir a importação de automóveis entre 1976 e 1990.
Não se volta atrás no tempo, muito menos se podem esperar resultados diferentes fazendo-se o igual. Almejar alcançar o mercado externo via desvalorização cambial é parecido com construir um muro na fronteira para trazer a indústria para dentro do país. Não me parece inteligente sacrificar a moeda para exportar carros baseados em tecnologia importada que nos é tão cara. Mais lógico me parece internalizar a engenharia e exportar tecnologia.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars