Manter a bateria como componente nativo do carro lembra o animal perseguindo um alimento preso a seu corpo
Creio que muitos já ouviram falar no artifício de pendurar uma espiga de milho ou uma cenoura na ponta de uma vara atada à cabeçada dos burros para que eles, tentando alcançar o alimento, caminhem sem parar (isso é lenda porque já fizemos essa tentativa e o burro simplesmente caminhou até uma árvore, quebrou a vara no seu tronco e comeu a espiga). A insistência em manter a bateria como componente nativo do carro elétrico lembra muito o burro perseguindo uma espiga que está presa a seu corpo.
Lemos no Best Cars que a Tesla pretende atingir o custo de € 100 por kWh de capacidade da bateria em 2020 e que, dois anos depois, o valor deve cair para € 70 para seu novo modelo mais acessível, contra os € 200 do principal concorrente. Isso motivou-me a escrever esta matéria. Significa que, ao longo do tempo, o valor inicial do carro vai ficar menor, o que parece uma ótima notícia. Será que é mesmo?
Ao vender o carro, dois anos depois, o comprador terá perda de 46,5%: o avanço tecnológico terá criado um ônus adicional a quem paga pelo veículo
Suponhamos que, sem as baterias, o carro custe a preço líquido (sem impostos) US$ 10.000. Suponhamos agora que a taxa de câmbio seja de US$ 1,20/€ e, daqui para frente, vamos conversar somente em dólares por ser uma moeda mais pertinente a nosso dia a dia. Por fim, suponhamos que a bateria seja de 100 kWh ao preço de US$ 12.000. Teremos que o carro custará US$ 22.000 ao fabricante que, com uma margem de 10%, resulta em preço líquido de venda de US$ 24.444 — sem impostos, lembre-se.
Imaginemos que, dois anos depois, a bateria tenha tido seu custo reduzido em 30%, passando a custar US$ 8.400. O carro passará a custar US$ 18.400. Num mundo ideal, em que os ganhos são repassados ao preço, mantendo a margem de 10% de baixo para cima (10% sobre o preço de venda), o preço do carro novo cairá para US$ 20.444. À primeira vista, a queda de preço aumentará a demanda, só que carros são comprados também tendo em mente sua desvalorização, tamanho é o investimento que representam.
Sabemos que o preço de um carro usado sofre influência de um sem número de variáveis, mas, por questões de facilidade de raciocínio, vamos admitir um valor fixo de 20% ao ano de uso, partindo do valor do mesmo carro zero-quilômetro à vista. No primeiro ano ele valerá 80% de um carro novo; no segundo, 64%; no terceiro, 51,2% e assim por diante.
Um comprador que tenha adquirido seu carro elétrico com baterias de US$ 120/kWh terá pago US$ 24.444. Se for vender dois anos depois, quando as baterias custarem US$ 84/kWh, conseguirá 64% sobre US$ 20.444, representando US$ 13.084. Isso significa apenas 53,5% do preço do carro novo, ou seja, uma perda de 46,5% em dois anos. O avanço tecnológico terá criado um ônus adicional ao comprador, que estou certo de que não ficará nada contente.
Servicificação
Isso acontece o tempo todo, é verdade, mas com bens muito menos expressivos em valor que um automóvel. Quando se fala em um telefone celular, por mais que passemos raiva, é suportável — e mesmo assim a compra de equipamentos vem crescendo de forma declinante ao longo do tempo. Observe que para uma pessoa física o desembolso não é custo, porque não cria valor palpável: é despesa porque cria somente bem-estar. Aos poucos, as pessoas estão se dando conta de que não é preciso possuir para obter bem-estar, podendo substituir a posse pela prestação de serviço, no que se convencionou chamar de “servicificação do consumo”.
O modelo não é novo, tendo sido praticado pela IBM, entre outros fabricantes de computadores, e pela Xerox, que detinha 99% do mercado de fotocópias e mantinha um concorrente subsidiado para não infringir as leis antitruste norte-americanas. Computadores eram caríssimos. A IBM os alugava e só eram viáveis para empresas de grande porte ou para as que prestassem serviços a empresas menores. A Xerox, além de alugar a máquina, vendia o tôner. Quando ela notou que o equipamento era tão caro a ponto de atrair a concorrência, passou a vender as máquinas quase sem margem para garantir o lucro pela distribuição do tôner. Foi um fracasso porque transferiu os custos de manutenção para o usuário.
O automóvel elétrico precisará ser alvo eterno de subsídio — ou seja, repassar esse ônus para o restante da sociedade, incluindo quem nunca teve ou terá um
Na medida em que o equipamento se barateia, o consumo passa do serviço à posse. As pessoas passaram a ter computadores pessoais e qualquer impressora hoje tornou-se multifuncional. Ocorre que o mercado saturou-se e as pessoas têm, via internet, o mundo na ponta dos dedos. Assim, o mercado está voltando à prestação de serviços.
A insistência em fazer das baterias um componente permanente dos carros elétricos parece ser a negação da tendência mundial do consumo. É exatamente o burro preso à espiga de milho porque, quanto mais o valor das baterias cair, sendo componentes do carro, maior será o prejuízo do consumidor por hora da revenda. O automóvel elétrico precisará ser alvo eterno de subsídio — ou seja, repassar esse ônus para o restante da sociedade, incluindo quem nunca teve ou nunca terá um carro desses. Subsídios não se sustentam por muito tempo, a não ser que, como ocorre com os usineiros no Brasil, o poder político dos beneficiários seja incomparavelmente alto, o que parece não ocorrer com o consumidor final de carros elétricos.
É justamente por isso que, sem medo de parecer repetitivo (leia coluna a respeito), defendo que as baterias sejam propriedade das distribuidoras de energia. Elas que arquem com a pesquisa para seu barateamento e o descarte correto, quando não com sua reciclagem, recuperando tudo isso pela remuneração do kWh vendido. É assim que as petroleiras remuneram crescentes investimentos em pesquisas em novos poços, que podem ultrapassar os 6 km de profundidade.
Não resta dúvida de que a padronização das dimensões das baterias e seu fornecimento em módulos, consoante o consumo esperado para o veículo, trazem limitações de projeto. Contudo, ou o fabricante de automóveis, os produtores de baterias e os distribuidores de energia entram em um acordo visando maximizar a geração de bem-estar ao consumidor final, ou partem para “servicificação” do consumo em grande escala, aproveitando que o “sob demanda” está em alta.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars