A servicificação do automóvel pode contribuir para que, como os aviões, carros sejam reciclados ao fim da vida útil
No início do século XX, criou-se um aparelho cuja popularização viria a provocar uma crise no transporte aéreo internacional. Foi o fax que, embora sendo uma invenção norte-americana, ganhou vulto no Japão por conta da escrita em kandi, que não era suportada pelos teletipos. Essa tecnologia já era usada para fins militares como meio de transferir documentos e, quando por rádio, tinha o nome de radiofoto ou telefoto, sendo muito usada pelas agências de notícias. Nos anos 1960, ainda muito caros, os aparelhos de fax (abreviatura de fac-símile, que significa reprodução ou cópia) só eram usados em casos extremos, mas os japoneses foram deixando os dispositivos cada vez mais baratos.
Com isso, muitas reuniões presenciais foram transformadas em chamadas telefônicas coletivas. Atas e contratos começaram a ser transmitidos pelo fax e internacionalmente aceitos como documentos. O resultado disso foi uma queda abrupta e significativa nas viagens de negócios, o que acarretou a aposentadoria de uma enormidade de aviões — em geral descartados no deserto de Mojave, entre os estados de Nevada e Califórnia, nos Estados Unidos É que aviões são feitos de alumínio e outros materiais muito nobres e que merecem carinhosa reciclagem, quando não reaproveitamento de peças inteiras como rebites, parafusos e outros elementos de fixação não sujeitos a fadiga.
O avião é prova industrial da lei de Lavoisier, mas por uma condição comercial especial: aeronaves de grande porte são em geral arrendadas, não vendidas

Reaproveitam-se também, sem reciclagem, peças de acabamento como bancos e mesas. O fato é que o avião é prova industrial da lei de Lavoisier: “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Mas existe uma condição comercial especial que induz a esse desmanche extremamente bem controlado. É que as aeronaves de grande porte quase nunca são vendidas, sendo objeto de arrendamento (leasing) de longo prazo, o que se convencionou chamar de loft. Não fora isso, caso as empresas aéreas do mundo todo tivessem de comprar suas aeronaves, o desmanche seria pulverizado pela face da Terra e o índice de reaproveitamento muito menor.
Com os carros isso não acontecia. Lembro-me de uma fotografia na revista Quatro Rodas, nos anos 60, mostrando balsas cheia de automóveis velhos a serem jogados no rio da Prata, em frente a Buenos Aires. Será que viraram berçário para peixes? Não faço a menor ideia. O fato é que automóveis abandonados encontram-se em todas as cidades do mundo, criando ratos, cobras e sendo fonte de inúmeras doenças. Preocupados com isso, os governos europeus, mais notadamente o francês, promoveram a aquisição de carros velhos facilitando o financiamento de modelos populares novos. Isso não proibiu a posse de carros antigos, só daqueles velhos e em mau estado — ou seja, os veículos têm sua vistoria mais amiúde face à idade. Aqueles retirados das ruas voltam às fábricas para reciclagem oficial.
Passados mais de 30 anos, dois fatores tendem a induzir ao desmanche controlado de veículos. O primeiro é o crescente uso de alumínio, entre outros metais nobres, em sua construção. Como as latinhas de cerveja comprovam, ele é o metal mais facilmente reciclável que existe. O ferro é reciclável com rendimento menor porque, graças à facilidade com que oxida, gera uma borra considerável — cujo fim, em percentagem até irrisória, é a fabricação de elementos de ferrita como ímãs e núcleos de transformadores.
O alumínio, por sua vez, pode ser reciclado inúmeras vezes mantendo suas características e, melhor ainda, fundido em temperatura muito mais baixa do que a do ferro, o que economiza energia. Também os materiais orgânicos, como plásticos, quando não reciclados na íntegra, servem como carga para peças de menor exigência tecnológica. Junte-se a isso o material mais reciclável que existe — o vidro — e teremos novos carros feitos com muito reduzida agressão ao ambiente via exploração de novas jazidas.
Isso, porém, não é suficiente para a retirada espontânea dos carros abandonados das ruas. É preciso que, a exemplo do que ocorre para os aviões, haja uma concentração de propriedade, para cuja escala de consumo a recuperação dos veículos descartados seja compensadora. Então, a servicificação do mercado de automóveis é capaz de contribuir muito. Hoje a indústria de locação de veículos concentra a maior parcela de aquisição de carros via frota no mundo inteiro, algo como 12% das vendas de veículos de passeio em âmbito mundial. Esse número tende a crescer, mas a revenda da frota usada faz parte do negócio das locadoras e, por causa disso, elas ainda não se interessaram em aliar-se aos fabricantes e reverter para eles os carros que descartarem.
É preciso haver uma concentração de propriedade para a recuperação compensar, e a servicificação do mercado de automóveis pode contribuir muito para isso

Minha crença é que, na medida em que a servicificação evolua, menos gente esteja interessada em comprar os carros descartados pelos frotistas em geral e eles passem a valer mais para os fabricantes do que para o público. Quer me parecer que, como acontece com os aviões, na medida em que eles se destinem majoritariamente ao aluguel, a forma com que são projetados mude da obsolescência programada para a máxima geração de valor para o comprador, sendo a durabilidade parte do processo. É só acompanhar a evolução do mercado de aviões.
Projetos demoram muito a sair do papel, transformarem-se em protótipos, serem homologados para depois serem vendidos. Somente um salto tecnológico significativo vai justificar tamanho investimento para retirar de uso o Boeing 747 — cujo primeiro voo ocorreu em 1969, depois de cinco anos de projeto — para a adoção do 787, cujo projeto iniciou-se em 2003 e primeiro voo deu-se em 2009. Se hoje a homologação de um novo modelo de automóvel já é complexa, imaginemos como será se adotada a condução autônoma.
O enfoque mercadológico tenderá muito mais para o aeronáutico do que o veicular atual. Tudo indica que será dirigido prioritariamente às frotas, enquanto o público que se mantiver proprietário será atendido por empresas do porte e do enfoque de uma Cessna ou uma Beechcraft. Não será possível confiar a manutenção do carro a um mecânico prático: as exigências de manutenção preventiva tenderão a ser infinitamente mais estritas que hoje.
Podemos esperar que, concernente à manutenção, o carro ficará mais próximo do avião e, no que tange à reciclagem, ele vai ficar mais parecido com a latinha de cerveja. Quem viver verá.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars