Ao lado da convergência tecnológica, a revolução logística leva a reconcentrar a fabricação de carros em alguns países
Se há termo que me irrita é “modal”. Quando se trata de frete que usa mais de um meio, o termo empregado é “intermodal”. Aí, algum profissional de poucas qualidades mentais passou a chamar os meios de transporte de modais, como modal ferroviário, por exemplo.
O grande obstáculo ao uso de transporte intermodal foi sempre o transbordo, ou seja, trocar de meio pode custar mais caro que a soma do frete nos vários modos. A movimentação de carga nos portos e estações tem sido o determinante de ser viável ou não importar algo. No século XIX, as locomotivas eram importadas da Inglaterra. Já imaginaram o esforço para colocar um equipamento inteiro no porão de um navio de madeira por cima de seu costado? Não precisam tentar, não havia guindastes grandes o suficiente. As locomotivas eram desmontadas e embarcadas aos pedaços para serem remontadas diretamente nas vias férrea que as usariam.
Havia, sim, guindastes capazes de embarcar e desembarcar automóveis, o que foi relativamente comum no início do século XX. O problema era o risco de danificar o produto, o que limitava o processo aos automóveis de luxo. Carros populares passaram a ser exportados pelo sistema CKD (complete knock-down), ou seja, completamente desmontados, para serem concluídos em linhas locais. Isso permitia acondicionarem-se as peças em caixas, minimizando o espaço livre nos contêineres, para se transportar o mínimo de ar possível entre dois continentes.
Havia guindastes capazes de embarcar e desembarcar automóveis no início do século XX: o problema era o risco de danificar o produto

Na medida em que os carros passaram a ter desenhos mais elaborados, a racionalização do acondicionamento foi ficando mais complexa — até sofrer o golpe final com a popularização da estrutura monobloco. Isso mais a ânsia pela modernização, sendo o carro um símbolo de desenvolvimento, pulverizou a indústria de automóveis mundo afora.
Não que as tentativas de popularizar o transporte intermodal fossem esquecidas. Pelo contrário, cometeram-se bizarrias como o autotrem, de que ainda existem remanescentes na Amtrak (empresa estatal federal de transporte ferroviário de passageiros dos Estados Unidos), levando carros e passageiros de Montreal para Vancouver, bem como a alguns destinos na Índia.
A ideia era minimizar o dispêndio com transbordo, levando caminhões carregados, bem como minimizar os gastos com combustível e cansaço ao dirigir para viajantes individuais. Não deu certo porque composições de carga mista ficavam num ponto intermediário na hora de priorizar o tráfego de carga ou passageiros nos trilhos, o que levou à extinção até mesmo dos aviões e navios de carga mista, por conta da ocupação dos aeródromos e portos.
Com o aumento do tráfego entre ilhas e continentes, mormente entre Inglaterra, Europa continental e Irlanda, popularizaram-se os navios roll-on/roll-off, que abriam a proa. Isso permitia a caminhões carregados e automóveis embarcarem-se a si próprios, reduzindo drasticamente os custos de transbordo, e levou ao abandono das ferrovias em prol do transporte rodoviário. Outras linhas vieram e, hoje, praticamente todos os continentes são servidos por linhas assim, visto que contêineres passaram a ser embarcados sobre rodas, em empilhadeiras porta-contêiner, que levam a carga para dentro da embarcação e ainda formam pilhas de até seis camadas em seu interior.
Pressão ambiental
Ao custo de transbordo devem-se somar outros dois motivos para acelerar a otimização do frete, em especial o intermodal: a crise do petróleo dos anos 1970 e 1980 e a pressão ambiental, pois esvaziar tanques de lastro infesta mares e rios com espécies exóticas, como o caramujo dourado, que nos entope eclusas e centrais hidrelétricas. O resultado disso foi uma corrida para que navios não naveguem “batendo lata”, disseminando o uso de embarcações porta-contêiner com capacidade para até 20 mil deles.
Até grãos estão, progressivamente, deixando de ser transportados em navios graneleiros, passando a trafegar em contêineres revestidos com enormes bolsas de tecido e borracha, chamadas de bulkliner. Isso troca o inútil lastro por carga paga, posicionando-se o material granulado nas camadas inferiores para manter o equilíbrio da embarcação.
A revolução no frete trouxe os carros para dentro dos contêineres. Um de 40 pés (12,2 metros) pode levar até três automóveis de pequeno porte ou dois de grande, além de permitir que sejam empilhados, assegurando uma proporção de quase 5:1 em relação ao transporte na modalidade estacionamento. Considere-se ainda a redução de custo na movimentação, seja no embarque, seja no desembarque e transporte para o destino final em caminhões-plataforma.
Se as restrições do transporte disseminaram a indústria pelo mundo, a solução desses entraves pode reconcentrá-la onde houver economias que a suportem

Semanas atrás, entrevistando um armador com agente em Santos, SP, ouvi que para trazer um utilitário esporte da China pagam-se somente US$ 250. Para um carro que pode ser vendido, digamos, pelos quase R$ 200 mil de um Ford Territory Titanium, isso não é significativo e justifica trazerem-se carros prontos.
O historiador francês Fernand Braudel, talvez o maior do século XX, criou o conceito de economia-mundo, em que os países-centro impunham seu modo de produção aos da periferia. Mais tarde, os teóricos da teoria da dependência dividiram o mundo em núcleos, semiperiféricos e periféricos, consoante o nível de inovação que conseguiam imprimir a seus produtos e processos. Essas teorias não deixam de fazer sentido, mas seriam bem mais explicativas se considerassem os aspectos práticos dos fatos históricos.
Estamos presenciando uma reconcentração da indústria em geral e da de automóveis em particular. Ela foi promovida, em parcela significativa, pela convergência tecnológica e noutra, mais significativa ainda, pela revolução logística. Assim, se as restrições do transporte contribuíram para disseminar a indústria de automóveis pelo mundo, há de ser a solução desses entraves capaz de reconcentrá-la — não nos locais de origem, mas onde houver economias internas que a suportem.
A China tem-se mostrado o foco desse movimento que ajudou a extinguirem-se fábricas em países ricos, como a Austrália, e outros não tão ricos como o Chile. Alguns mercados se sustentam por fazerem parte de uniões comerciais, como é o caso do Mercosul. Contudo, com os movimentos por sua dissolução, sabe-se lá por quanto tempo teremos fabricação local de veículos.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars