Gasta-se mais de pedágio do que de combustível e fica o sentimento de ter sido lesado: entenda como tudo começou
Anos atrás o Best Cars publicou uma matéria que me fez sonhar. A avaliação da Audi RS6 Avant sugeria que, se fosse permitido, pisando fundo podia-se chegar a 200 km/h em alguns segundos sem perder a praça de pedágio de vista. Sonho ou pesadelo? Quanto ao carro, sonho; quanto ao pedágio, pesadelo. De São Paulo a Uberaba (MG), por exemplo, gasta-se mais de pedágio do que de combustível em um carro médio. Já fiz essa viagem mais de 100 vezes, sempre com o mesmo sentimento de ter sido lesado. Mas será que fui mesmo? Como foi que tudo começou? Para onde vai?
Na década de 1970, a idade média do povo brasileiro era de apenas 19 anos e o nível de emprego era bastante alto. A previdência social era a segunda maior fonte de arrecadação do governo federal e, em fluxo de caixa, disparadamente a melhor para os investimentos públicos. Tal fluxo de caixa muito favorável era explicado pelo número de trabalhadores ativos muitíssimo maior que o dos inativos. O dinheiro entrava a rodo e o pagamento das aposentadorias era ínfimo.
A privatização deu poder de monopólio sobre os destinos: de São Paulo a Campinas, ou ao litoral, ou oeste do estado, tem-se que se sujeitar a uma só concessionária

O governo entendeu isso e, por um lado, passou a contratar servidores pela CLT e, por outro, a usar o excedente de recursos para construir rodovias, refinarias de petróleo, usinas hidroelétricas, hospitais — de tudo, enfim. A sede por arrecadar levou ao aumento do teto de 10 para 20 salários em 1973, o que aumentou em muito os recursos para investimento.
A casa começou a cair no início dos anos 1980, porque o nível de emprego despencou com a crise econômica e a arrecadação da previdência, no que tangia ao setor privado, minguou. A coisa ruiu mesmo na promulgação da Constituição de 1988. Todos os servidores passaram a estatutários e a arrecadação correspondente passou ao fundo de pensão dos funcionários públicos. Como se isso não bastasse, o gasto com aposentadoria no setor público multiplicou-se por sete.
Eis que desapareceu a principal fonte de recursos para investimentos, agora dependentes exclusivamente dos impostos. Resumindo, a fonte secou. Ou construíam-se novas rodovias, ou mantinham-se as existentes. Para as duas coisas o dinheiro não dava mais. O remédio foi optar por o Estado construí-las e a iniciativa privada mantê-las cobrando pedágio. Não há nada de irracional nisso — na verdade, parece ter sido a única saída.
Ocorre que a privatização não previu a concorrência. Em São Paulo, por exemplo, o par Castelo Branco/Raposo Tavares foi para uma empresa, outra pegou o par Anchieta/Imigrantes, enquanto uma terceira ficou com o par Anhanguera/Bandeirantes. Isso deu poder de monopólio às concessionárias, que dominaram os destinos. Se um motorista quiser ir de São Paulo a Campinas, ou ao litoral, ou oeste do estado, terá que se sujeitar a uma só concessionária que acaba por cobrar um preço altíssimo.
Não resta dúvida de que o serviço — seja de manutenção, seja de assistência ao motorista — melhorou muito, mas a um custo social bastante elevado, porque isso influencia todo o tipo de transporte, de mercadorias ou de passageiros. Será que seria possível fazer o mesmo cobrando menos?
Concorrência em preço e qualidade
Talvez sim: bastaria que os pares fossem desfeitos e, sobretudo, que as concessões não se pudessem transferir quando a concessionária fosse absorvida por outra empresa. Se cada concessionária tivesse assumido uma só rodovia nos exemplos acima, elas teriam de concorrer entre si em preço e qualidade. O argumento contra isso era o de que as rodovias mais antigas como Anchieta, Raposo Tavares e Anhanguera tornaram-se quase secundárias, haja vista que seus traçados são muito inferiores ao das mais modernas de mesmo destino — Imigrantes, Castelo Branco e Bandeirantes, na ordem.
Essa disparidade tecnológica levaria as concessionárias das rodovias mais antigas a serem muito menos lucrativas que as detentoras das mais modernas. No caso da Raposo Tavares a coisa ficaria crítica, porque ao sair de São Paulo se atravessam 12 municípios antes de chegar a Sorocaba, o que anula em tempo os 30 quilômetros a menos do trajeto. Por outro lado, o índice de automóveis por quilômetro é muito mais alto nela do que na Castelo Branco. Justamente por atravessar muitos municípios, os trajetos dos usuários são menores, fazendo mais carros passarem pelos postos de arrecadação.
Um morador faz compras de mês em outra cidade e janta em uma terceira antes de voltar para casa, com o que o índice de automóveis por quilômetro cresce muito
Se a concorrência não for em preço, que seja em qualidade. Uma vez, viajando de Pirajuí até Promissão (SP) pela SP-300 Marechal Rondon, meu motorista perguntou: “O senhor sabe por que tem tanto buraco no acostamento?”. Respondi que não e ele explicou: “É que estão todos esperando para entrar na pista”. De fato, a falta de alternativa faz com que a concessionária continue cobrando caro, só que sem a contrapartida de qualidade do serviço.

O governo diz que resolveu isso concedendo trechos a empresas diferentes, argumento que chega ao ridículo, haja vista que se criaram mais “micromonopólios”. No interior dos estados mais populosos isso é ainda mais grave, porque há o fenômeno da metropolização. No trecho que citei as metrópoles são Bauru, Lins e Araçatuba. É muito comum um morador de Pirajuí ir fazer as compras de mês em Bauru e jantar em Lins antes de voltar para casa. Com isso, a exemplo da Raposo, o índice de automóveis por quilômetro cresce de modo significativo. É quase um pedágio urbano, como se observa na Washington Luís.
Esse fenômeno concentrou serviços como saúde e educação superior nas metrópoles de cada região, transformando as cidades adjacentes em satélites. Como em Economia não há nada totalmente negativo, o emprego nas cabines de pedágio passou a ser parte importante do mercado de trabalho nos municípios menores. A contrapartida é que o poder político perante a prefeitura aumentou muito. Hoje, apesar de as rodovias “pedagiadas” serem estaduais ou federais, não há um município que não as veja com bons olhos.
O pior está por vir. Embora as concessões sejam intransferíveis, não há nada que impeça a absorção de concessionárias por outras empresas do ramo, o que lhes aumentando em muito o poder de monopólio. Isso tem ocorrido pelo Brasil todo, mais notadamente em São Paulo porque a quilometragem privatizada é muito alta, assim como a frota. Para sanar essa distorção seria interessante que as concessões não fizessem parte do patrimônio da empresa, obrigando a nova licitação sempre que as concessionárias fossem negociadas.
Pelo que se viu até agora, da privatização não escaparemos mais. Há, porém, meios de minorar o custo social desse fenômeno irreversível, usando as práticas já constantes da legislação destinada à contratação de serviços pelo poder público. Algumas rodovias como Fernão Dias, Dutra e Regis Bittencourt já tiveram a contratação pelo menor preço, a partir das garantias usuais de capacidade técnica e financeira para manter o serviço. Ainda não se chegou a um modelo que equalize as vantagens da privatização e seu custo social, mas tenho a esperança de que um dia cheguemos lá.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars