Modificações precoces em estilo e mecânica são feitas
com um só objetivo: motivar a troca do carro ainda recente
Quem comprou durante o ano passado um Honda Civic da nova geração devia estar, acredito, satisfeito — é fato que se trata de um carro bem resolvido e de boa qualidade. No entanto, o que começou em outubro no Salão de São Paulo certamente se tornou fonte de insatisfação este mês: a Honda coloca nas ruas o modelo 2014 com motor de 2,0 litros para substituir o antigo 1,8 em duas das versões, apenas 12 meses após a chegada do carro às concessionárias. Em palavras simples, o novo ficou velho — em um ano ou menos.
E os donos de Civic não são os únicos. Quem comprou um Ford Fiesta hatch importado do México, lançado em outubro de 2011, verá em algumas semanas seu carro tão recente e atual ficar desatualizado com a chegada da versão nacional, fabricada em São Bernardo do Campo, SP, com novo estilo na frente. E, se serve de consolo para esses proprietários, a rápida modificação de novos modelos acontece até no mercado de luxo: só dois meses se passaram entre o lançamento do Mercedes-Benz C 250 CGI, em março de 2011, e a reforma visual aplicada a todo Classe C em maio. Os compradores da primeira versão devem ter ficado vendo estrelas… de raiva.
Erros de estratégia? Mau planejamento? Atrasos na produção? Na maioria dos casos, parece que não se trata disso, mas da conhecida obsolescência programada, termo válido não só para automóveis — é comumente aplicado a computadores e seus programas, por exemplo. Atribui-se a criação dessa estratégia a Alfred Sloan, presidente da General Motors na década de 1920, que propôs a rápida renovação de estilos, cores e acessórios de seus modelos para estimular o público à troca frequente de carro — motivada não por seu uso ou pela perda de confiabilidade, mas pelo desejo de estar atualizado, de circular com o “último tipo”.
Não importando em que momento você comprasse seu Palio, o modelo já seria outro quando sua dívida terminasse: que tal levar para casa um carnê novinho em folha?
Um executivo da Fiat já declarou à imprensa que o ritmo de alterações estéticas imposto ao Palio da geração passada — em geral a cada três anos — foi escolhido por ser esse o prazo médio dos financiamentos de veículos no Brasil. Assim, não importando em que momento você comprasse seu Palio, o modelo já seria outro quando sua dívida terminasse… E que tal levar para casa um carnê novinho em folha junto de nossos novos faróis e tecidos de banco?
Três anos ainda parecem um intervalo razoável, tendo em vista que muitos modelos (como os citados acima) são modificados em bem menos tempo. Em geral não é o desenho que dura tão pouco: o que acontece é a defasagem entre o lançamento da geração, ou uma reforma visual qualquer, e uma alteração mecânica importante que poderia ter sido feita naquele primeiro momento, a exemplo do Civic de 2,0 litros.
Foi o que aconteceu em 2010 com o Fiat Doblò, que trocou o motor GM pelo Fiat E-Torq nove meses depois de uma atualização estética; em 2009 com o Chevrolet Vectra hatch, alterado em motor e aparência um ano e meio após ser lançado; em 2005 com a Ford Ranger, que ganhou novo motor a diesel seis meses depois da renovação visual; em 2004 com o Palio, que recebeu motor 1,8 flexível seis meses após uma reestilização; e em 2001 com o Marea, reestilizado na traseira 10 meses depois da adoção do motor de 2,45 litros. Mas nenhum caso supera a GM com a Meriva 2004, cujo motor se tornou flexível três semanas após a mudança de ano-modelo — ao menos o número de compradores irritados foi pequeno…
Como celular
Seria essa uma tendência recente, coisa de nossos tempos em que as pessoas trocam de telefone celular antes de memorizarem o uso de suas funções? Nada disso: a obsolescência programada vem de longe e registra vários casos na indústria nacional no século passado.
Na Volkswagen, o Gol lançado em 1980, que tinha apenas motor de 1,3 litro, foi tão mal recebido pelo mercado que em um ano já surgia a versão 1,6. Mais tarde, em 1984, o esportivo Gol GT teve uma série reduzida com câmbio de quatro marchas, vendida só até ficar pronta a caixa de cinco. O motor AP estreou em 1985 para um Santana ainda recente — lançado um ano e meio antes com um 1,8-litro menos eficiente, talvez desenvolvido às pressas. A perua Quantum surgiu já de motor novo, mas em um ano sofria alterações visuais. Em 1987 a reforma de estilo do Gol chegou incompleta, pois em 12 meses viria um novo painel, que o Voyage já exportação já usava quando o visual foi modificado. Lá atrás, em 1967, o Fusca 1300 ganhou sistema elétrico de 12 volts alguns meses depois da troca de motor.
Na General Motors, passou-se um ano entre o lançamento do esportivo Monza S/R com motor 1,8, no fim de 1985, e sua substituição pelo de 2,0 litros (no caso da versão de topo Classic o intervalo foi ainda menor). Antes, o Opala 1981 recebera o novo painel que deveria ter acompanhado a reformulação externa do ano-modelo anterior, caso igual ao do Gol. E uma mudança de estratégia da fábrica, que preferiu passar a importar o Astra da Bélgica, levou à extinção do Kadett GSi ainda em 1994, embora tivesse sido lançado o modelo 1995. Curiosamente, a importação do mesmo Astra logo se inviabilizou — pelo aumento de impostos — e o carro saiu do mercado em pouco mais de um ano. Só faltou voltar o GSi…
Caso similar foi o do Fiesta trazido da Espanha, que estreou em 1995 e, após cerca de 15 meses, cedeu lugar a um modelo nacional com estilo renovado. Também em 1996 a empresa passou a trazer o Escort da Argentina e adotou nova grade, que em seis meses se tornava ultrapassada com a versão Zetec de 16 válvulas e estilo renovado. Antes, em 1983, a perua Del Rey Scala teve o motor modificado — para o chamado CHT — poucos meses depois de estrear nas lojas.
Mesmo sem alterações, a troca antecipada do ano-modelo estimula compradores que pretendem reduzir a desvalorização, já que terão um automóvel “um ano mais novo”
Se a Fiat hoje é uma das marcas que mais apelam à obsolescência programada, em suas primeiras décadas de mercado o recurso era menos comum — mas existiu. A linha Uno recebeu atualizações como painel para 1989 e, um ano depois, veio o motor de 1,6 litro no lugar do 1,5. Pouco mais de um ano se passou entre o lançamento do Tempra 16V, em 1993, e as mudanças visuais e internas do precoce modelo 1995, lançado em abril do ano anterior. E podem ser só detalhes, mas o Brava apresentado em 1999 passou por duas alterações muito cedo: aumento de potência em 7 cv, já nas primeiras semanas, e adoção dos faróis elipsoidais do Marea, seis meses mais tarde.
Como se não bastasse, o que começou com casos isolados nos anos 90 tem sido cada vez mais comum: a mudança precoce de ano-modelo, como no Civic 2014. O objetivo é claro: mesmo que não haja alterações significativas no carro, a troca antecipada para o primeiro trimestre, ou até para janeiro, motiva alguns compradores que pretendem reduzir a desvalorização na revenda, já que estarão com um automóvel “um ano mais novo” que outros produzidos na mesma época.
O recordista foi o Palio Fire 2010, anunciado ainda na primeira semana de 2009, tão logo começaram a sair da fábrica os carros produzidos naquele ano. O recorde só não foi batido porque tornaria impossível emplacar o veículo: no Brasil, o ano de fabricação e o ano-modelo devem ser iguais ou consecutivos. Mesmo assim, a Ford chegou a apresentar a atual versão do Ka em dezembro de 2007 como modelo 2009. Como as vendas só começariam em janeiro seguinte, as unidades de avaliação da imprensa (e só elas) foram licenciadas como 2007/2008.
Não tenha dúvidas de que, se a legislação permitisse, estaríamos hoje com modelos 2015 ou 2016 nas concessionárias, alguns com perspectiva de passar por várias modificações até que o ano indicado realmente chegasse. Afinal, para garantir a lucratividade, a obsolescência programada tem de continuar.
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