Para que seus carros pareçam melhores, algumas marcas usam nomes e métodos um tanto questionáveis
Quem convive com crianças diverte-se no dia 1°. de abril com suas brincadeiras e “pegadinhas” do Dia da Mentira, ou dia dos tolos nos países de língua inglesa. Para o comprador de automóveis, porém, bom seria que nos 364 outros dias do ano as mentiras ficassem de lado — e não é o que acontece. Nomes e medidas são muitas vezes mal-empregados, ou se usam critérios diferentes da prática do mercado, para induzir o cliente à conclusão de que o produto seja melhor ou ofereça mais atributos que os concorrentes. Vamos lembrar alguns.
• Potência – Anos atrás, ficaram famosas as manobras da Hyundai-Caoa de informar potência acima da verdadeira. Foram casos como o do Veloster, anunciado com 140 cv e na verdade dono de 126, e o do Azera, com 270 cv declarados e 250 efetivos — os valores divulgados eram de versões com injeção direta, então não vendidas no Brasil. Chegou-se a brincar que a potência seria medida em “cavalos-Caoa”, de valor diferente do cavalo-vapor habitual, ou que haveria procriação dos equinos durante o transporte de navio desde a Coreia do Sul.
A Mitsubishi — e parece que só ela — entende que duas bolsas infláveis de cortina valham por quatro, sob o argumento de que protegem quatro ocupantes

Parece que a prática não foi abandonada: ao medir em dinamômetro o JAC T40, acusamos 119,6 cv em vez dos 138 anunciados. Existem também carros, como vários da Ford, cuja transmissão automática (ou automatizada) passa à próxima marcha antes de se atingir a rotação de potência máxima. Assim, o motor pode até produzir aquele valor, mas o motorista não tem como usar.
• Suspensão – A Nissan anuncia que a Frontier tem “suspensão traseira multilink”. O termo em inglês, traduzível por multibraço, designa uma suspensão independente sofisticada que está na maioria dos carros de luxo — mas não na picape. O que a Frontier usa é um eixo rígido com cinco braços de controle, técnica que no Chevrolet Trailblazer é descrito como “5-link”. Após receber o prêmio Pinóquio de Ouro de 2017, atribuído pelo jornalista Boris Feldman à maior mentira do ano no setor, a Nissan passou a falar em “multilink com eixo rígido”. Contudo, a expressão que induz a engano permanece no trecho sobre suspensão do site da Frontier. Se quer uma picape com multibraço de verdade, compre a Fiat Toro.
• Bolsas infláveis – Já se vão 12 anos desde que apontei a incoerência, mas ela continua: a Mitsubishi entende que duas bolsas infláveis de cortina valham por quatro, o que levaria o Outlander a um total de nove bolsas. A praxe do mercado — até onde sei, seguida por todas as outras marcas — é contar as cortinas como duas, de modo que tal SUV tem sete bolsas. A empresa alega que duas cortinas protegem quatro pessoas. Se esse for o parâmetro, talvez devesse anunciar apenas quatro bolsas infláveis, pois é o número de ocupantes aptos a usar todas elas.
• Porta-malas – Maior capacidade de bagagem pode motivar a compra. Com isso, surge a tentação de usar um padrão de medição incomum, como o de líquido — que levava o Citroën C4 Pallas a generosos 580 litros no Brasil, ante 513 declarados na Argentina e na China. Existe ainda o padrão norte-americano SAE, que inclui o espaço até o teto: é por isso que o Kia Sportage atinge 868 litros no Brasil, embora não passe de 503 litros na Europa, onde se mede até o topo do encosto traseiro. Como a maior parte dos concorrentes segue a medição até o banco, supõe-se uma vantagem que não é real. Outra a usar capacidade até o teto é a JAC, que assim declara impensáveis 600 litros no T50.
• Depenação – Não é bem uma mentira, mas pode fazer o comprador se sentir tão desapontado quanto. O carro é lançado com certos conteúdos e, anos depois, onde eles foram parar? Viraram alvos do “departamento de depenação” ou dos “contadores de feijão”, área dos fabricantes destinada a simplificar o produto para reduzir custos de produção.
O padrão SAE mede a capacidade de bagagem até o teto: assim o Kia Sportage atinge 868 litros no Brasil, embora não passe de 503 litros na Europa

Como exemplo, o Jeep Renegade Longitude 2016 oferecia monitor de veículos em pontos cegos, assistente de estacionamento, mostrador de pressão dos pneus, tomada de energia para os passageiros, rebatimento elétrico dos retrovisores e lanterna recarregável no porta-malas. Nada disso equipa mais o modelo, nem nas versões superiores Limited e Trailhawk. Já o Ford Ecosport 2018, anunciado com sete bolsas infláveis de série (sete mesmo, não é “conta de Mitsubishi”) em toda a linha, logo perdeu cinco delas nas versões SE e Freestyle. A linha 2020 também “depenou” os faróis de xenônio do Titanium, comandos de marchas no volante e tela de 8 pol na central de áudio do Freestyle.
• Novo – Como já disse aqui, a palavra “novo” será tão mais comum na divulgação de um carro quanto menos novo ele for. Vem um tom de cinza mais escuro na grade e já se fala em “novo visual”. Uma leve recalibração da central eletrônica é razão para “novo motor”. A cereja do bolo é o Hyundai IX35 — que saiu de produção em 2015 no mundo desenvolvido —, anunciado como “Novo IX35 2019” no site da marca. Se esse é o novo, nem quero ver o velho…
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