Uma é mais prática, outra mais divertida, mas ambas revelam
vantagens próprias para cada forma de usar o automóvel
Tração dianteira ou traseira, qual a melhor? Esse é um daqueles assuntos que rendem longos debates entre os aficionados por automóvel e que, no fim das contas, não permitem chegar a um consenso, pois há vantagens e desvantagens em cada disposição.
Embora um dos primeiros automóveis brasileiros — a perua DKW-Vemag Universal, lançada em 1956 — já tivesse tração à frente, no começo de nossa indústria a solução mais comum era a de rodas traseiras motrizes, fosse em carros pequenos, médios ou grandes. A arquitetura mais tradicional era de motor longitudinal dianteiro e tração atrás, mas sempre houve modelos que defendessem a tração dianteira, como a própria linha DKW e mais tarde, o Ford Corcel. A divergência entre os dois conceitos persistiu até a década de 1990, quando o último carro nacional com tração posterior, o Chevrolet Omega, saiu de produção. De lá para cá, apenas algumas picapes e utilitários esporte usam essa disposição.
Nos anos 60 a indústria norte-americana passou a adotar em massa a tração dianteira, até mesmo em carros enormes com motores V8
Em âmbito mundial, a tração traseira foi quase absoluta até a década de 1960, mesmo que a dianteira tenha contado com iniciativas bem-sucedidas (caso do Citroën Traction Avant) e outras nem tanto (como o Cord, lançado nos anos 30 nos Estados Unidos). O Mini inglês de 1959 é considerado um divisor de águas, pois sua combinação de tração à frente, motor transversal e rodas pequenas permitia excelente aproveitamento de espaço e deixava à vista as grandes possibilidades dessa arquitetura — logo seguida por todo fabricante em modelos compactos.
Foi também nos anos 60 que a indústria norte-americana passou a adotar em massa a tração dianteira, até mesmo em carros enormes com motores V8 de grande cilindrada, como o pioneiro Oldsmobile Toronado de 7,0 litros e o Cadillac Eldorado de até 8,2 litros. O objetivo ali não era “empacotar” os órgãos mecânicos em menor espaço, como no Mini, mas tornar a direção mais fácil, sobretudo em condições de menor aderência, como veremos adiante.
Fabricantes de carros de alto desempenho, porém, mantiveram-se fieis à tração traseira: BMW, Ferrari, Maserati e Porsche nunca a abandonaram, mesmo que ofereçam modelos com tração integral; Aston Martin, Jaguar e Mercedes-Benz só usaram ou usam a dianteira em modelos de menor porte e/ou potência; e marcas como Chevrolet, Cadillac, Chrysler/Dodge, Ford, Infiniti e Lexus mantêm tração atrás em seus modelos mais potentes e esportivos. Na Austrália, Ford e Holden (General Motors) não abrem mão da tradicional arquitetura em seus grandes sedãs.
Os dois lados da moeda
Há importantes diferenças entre as duas formas de transmissão que explicam a divergência entre os adeptos de cada uma.
O primeiro aspecto a favor da tração dianteira é o do “empacotamento” (packaging) que fez a fama do Mini: com motor e transmissão juntos ao eixo da frente, consegue-se um trem de força mais compacto e evita-se a árvore de transmissão (cardã) que leva potência do motor até as rodas de trás. O cardã implica tanto perdas de energia quanto consumo de espaço, pois seu uso costuma exigir um túnel central mais alto e largo no assoalho.
Se o motor for colocado em posição transversal, ainda melhor, pois se evita a rotação em 90 graus no sentido da transmissão de potência, o que traz ganho em eficiência, e em geral se consegue uma frente mais curta, com possibilidade de um carro mais compacto (ou com capô mais baixo, favorável à aerodinâmica) sem prejuízo do espaço interno. E motor transversal só se justifica com tração dianteira, embora haja modelos assim com quatro rodas motrizes.
Do ponto de vista dinâmico, há também algumas vantagens. Uma delas (desde que com motor dianteiro) é manter maior peso sobre as rodas de tração, importante sobretudo em subidas e terrenos de baixa aderência. Quem já dirigiu na terra ou na areia uma picape com tração traseira e caçamba vazia percebeu como é fácil atolar, pois há pouco peso sobre as rodas motrizes. Com tração na frente, o peso do motor ajuda a manter a aderência.
Benefício adicional, mas que se tornou decisivo em épocas nas quais suspensões e pneus eram muito menos desenvolvidos e mal havia eletrônica no automóvel, é a facilidade de controle pelo motorista em curvas. Com tração dianteira, a tendência natural do automóvel ao atingir o limite de aderência é o subesterço ou saída de frente, alargando a curva. Essa atitude é fácil de corrigir e mesmo instintiva para um condutor menos habilidoso: tira-se o pé do acelerador e vira-se o volante um pouco mais no sentido da curva, o que retoma a trajetória.
Com tração traseira tem-se a divisão de tarefas entre as rodas: ficam as dianteiras com a direção e as traseiras com a aplicação de potência ao solo
Nem todo carro de tração traseira tem o comportamento oposto, o do sobresterço ou saída de traseira — aliás, são cada vez mais raros os que atuam dessa forma, justamente porque os fabricantes têm optado pela atitude mais favorável ao controle pelo motorista. Contudo, se o sobresterço se manifesta, a reação do condutor precisa ser outra: acelerar e mover o volante para fora da curva, contra-esterçando, o que requer habilidade quase de piloto. Se o motorista age como no caso do subesterço, o carro tende a girar em torno de seu próprio eixo, rodando, o que leva em muitos casos à perda de controle.
Pelo exposto, parece que têm razão as muitas fábricas que adotaram a tração dianteira como padrão em seus carros, não? Sim, mas só até certo ponto.
Como toda moeda tem dois lados, a tração traseira também revela vantagens importantes. A mais inerente delas é a divisão de tarefas entre as rodas: não importa onde está o motor, ficam as dianteiras com a direção e as traseiras com a tração, a aplicação de potência ao solo. Como as forças exercidas sobre o pneu (direção e tração) se somam e existe um limite para sua aderência, ao fazer uma curva rápida chega um momento em que ele não pode receber mais potência sem derrapar.
Outro benefício tem relação com o deslocamento de massas do veículo. Quando acelerado, seu movimento à frente transfere peso para trás: as rodas dianteiras perdem aderência e tendem a patinar, enquanto a tração traseira aproveita tal deslocamento para obter aderência ainda maior. Nas frenagens intensas, o carro com trem de força todo na frente projeta mais peso sobre os pneus dianteiros (o que não é desejável) que o automóvel com tração atrás.
Tais fatores explicam por que carros de alto desempenho continuam com tração traseira, quando não integral. Há algum tempo se considerava que 200 cv eram um limite razoável de potência para tração dianteira, mas a evolução de pneus, suspensão e eletrônica (com controles de tração e de estabilidade) elevaram esse patamar. Hoje há modelos dessa configuração com mais de 250 cv com resultados bastante aceitáveis de comportamento. Desse nível de potência para cima, porém, os benefícios da tração traseira crescem de forma evidente.
Sendo o motor dianteiro, ter rodas motrizes atrás concorre ainda para melhor distribuição de massas entre os eixos. É comum ver modelos com essa arquitetura que obtenham divisão próxima a 50% por eixo, enquanto os de motor e tração à frente raramente escapam de concentrar nesses pneus cerca de 60% do peso.
Qual o efeito? Mesmo com aplicação moderada de potência, o carro com distribuição mais desigual tende a sobrecarregar os pneus dianteiros em curvas, chegando mais cedo ao limite de aderência. E o desgaste de tais pneus torna-se maior, enquanto a tração traseira contribui para desgastá-los de maneira homogênea. Ainda, a ausência de transmissão na frente permite maior esterçamento dessas rodas, o que diminui o diâmetro de giro e facilita manobras.
Por todas essas razões, os entusiastas da direção esportiva são praticamente unânimes na preferência pela tração traseira. Por mais casos que existam de tração dianteira com comportamento brilhante, eles concordam que despejar potência nas rodas de trás é o caminho para obter prazer e diversão ao volante, seja para elevar as capacidades de curva e de aceleração, seja para ultrapassá-las e pôr à prova sua capacidade como motorista.
No entanto, como nem sempre há muita potência à disposição ou oportunidade para explorá-la, as vantagens da tração dianteira asseguram seu emprego como solução mais eficiente e econômica para os carros que nos levam e trazem todos os dias.
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