O triste anúncio do encerramento de produção de dois dos mais emblemáticos Fords já vendidos por aqui
Lá se vão os Fords Fiesta e Focus, de uma só vez. Um encerra o ciclo de mais de 40 anos da fábrica de São Bernardo do Campo, SP, e de 24 anos desde que o modelo espanhol desembarcou por aqui, um ano antes da nacionalização. O outro, que está entre nós desde a virada do milênio, deixará em breve de ser produzido na Argentina.
Que tristeza. Esses eram os dois Fords de que eu mais gostava, de verdade. O Fiesta da atual geração nasceu tão bonito que, na minha modesta opinião, é irreproduzível. Um daqueles carros intocáveis no desenho, no naipe de Fiat Punto ou Honda Civic de oitava geração, que não deixam nada a ser feito em dobra alguma de lata até que o carro, obsoleto, morra de inanição. O sucessor que debutou na Europa, em termos de arrojo, não passa perto.
Enquanto outras falam de mobilidade urbana, compartilhamento e eletrificação, a Ford vinha meio sonolenta, contanto uma história pequena aqui ou ali
Do Focus, mais me interessa o legado de dirigibilidade e esportividade, pois a primeira geração, aquela de estilo anguloso e inesquecível, é mais marcante em termos de desenho. O Focus de hoje, que logo será de ontem, tem muita evolução debaixo das latas quando comparado com o primeiro. Mas creio que o estilo do modelo atual é pouco original, um reflexo das sucessivas escolas de desenho que levam em conta aspectos como “sensação de robustez” e “atitude”, coisas que vão e vêm. Tanto que a nova geração europeia mais parece um BMW que um Ford.
Há muita coisa por trás do fim desses dois modelos. Aliás, há muita coisa acontecendo na Ford, mundo afora. Já faz tempo que a empresa de Dearborn vem passando sufoco nas margens, em um mercado agressivo, competitivo e em transformação frenética. Enquanto outras marcas, dia após dia, mostram seus ensaios em termos de mobilidade urbana, eletrificação, compartilhamento e demais tendências, pelo menos para manter certa imagem de vanguarda, a Ford vinha meio sonolenta, contanto uma história pequena aqui ou ali, de carros que entregavam pizza sozinhos, aplicativos sem muita relevância ou de parcerias pontuais com startups de transporte.
Redução de portfólio
O mercado parecia um tanto angustiado com essa inépcia. Até que em abril do ano passado o oval azul anunciava, simplesmente, que abandonaria completamente a linha de sedãs nos Estados Unidos — ficaria apenas com Mustang, picapes, utilitários esporte e assemelhados. É óbvio que isso carimbou o futuro nas Américas para Fiesta, Focus e Fusion, modelo mexicano que alimenta EUA e América do Sul. O que pensar, então, de uma planta industrial sessentona, inaugurada na década de 1950 para produzir os utilitários da Willys-Overland? Um gigante que se restringia a produzir Fiesta (de vendas minguantes) e caminhões — um segmento no qual a Ford ainda tem nome por aqui, mas que, pelo visto, não está no radar de investimentos.
A questão, portanto, não é o Fiesta — um carro lançado há dez anos e que, por mais moderno que ainda fosse, está ficando para trás. Falamos de uma estratégia global de redução de portfólio. É uma decisão que tem a ver com o próprio futuro da marca, bem angustiante, diga-se. Comentou-se que a General Motors seguia caminho semelhante com a unidade de São José dos Campos, mas aquilo cheirou mais a bravata pré-anúncio de investimento, o que se confirmou poucos dias depois. Estratégia de comunicação bem gasta.
Para um mercado como o nosso, mais lógico foi prever a continuidade de uma unidade industrial mais moderna e com mais sinergias entre produtos: Camaçari
A sorte parece ter ficado com a planta de General Pacheco, na Argentina, cooptada pela aliança global entre Ford e Volkswagen para a produção de veículos comerciais e picapes. As próximas gerações de Ranger e Amarok surgirão da mesma prancheta, numa tentativa de renovar os portfólios no segmento das picapes médias. Separar no banco mais de US$ 600 milhões só para demitir pessoal em São Bernardo dá ideia da complexidade do negócio, numa ação que eliminará quase 3 mil postos de trabalho.
Já dirigi Fiesta e Ka. Óbvio que, se pudesse escolher, mataria o Ka. O Fiesta é muito melhor, tem construção mais refinada, é um carro mais complexo e completo, dá mais prazer de guiar. Teria espaço para se manter — vide as boas vendas de compactos como o VW Polo e o Toyota Yaris. Mas exigiria algum investimento, ou numa nova geração, como a europeia, ou numa reestilização ampla e acompanhada de motor e transmissão automática. Para um mercado com as características do nosso e o momento econômico em que se encontra, mais lógico foi prever a continuidade de uma unidade industrial mais moderna e com mais sinergias entre produtos e plataformas, como é Camaçari, BA. Modernizar o Ka e adicionar-lhe sofisticação parece ter sido uma decisão fácil de ser tomada.
Para os fãs da marca norte-americana, uma das poucas recentes novidades foi a cama de casal que não deixa que um par roube o espaço do outro durante o sono. Era apenas uma brincadeira do pessoal de marketing para promover o assistente de faixa usado em seus carros, mas bem poderia ser útil no caso de a VW querer dar uma de espertinha…
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars