Um mesmo automóvel geralmente não é capaz de atender a múltiplas expectativas, como espera o consumidor
A experiência de guiar num centro urbano é muito diferente daquela que se vive dirigindo em uma autoestrada. É óbvio para alguns motoristas mais rodados, nem tanto para a maioria dos ditos motoristas comuns. As reações do automóvel ficam completamente diversas quando se alteram as variáveis velocidade e aceleração, e parte importante da experiência ao volante é composta de como o equipamento lida com isso.
Na cidade, são diferentes as expectativas. Salvo exceções, não se tem muita necessidade de grandes velocidades ou estabilidade em cruzeiro. Costuma-se valorizar mais o acerto confortável para ruas irregulares, uma posição de dirigir que privilegie o conforto de membros que se movimentam muito, como a perna esquerda e a mão direita, e um volante mais leve para constantes manobras de esquinas e estacionamento.
Ah, o maravilhoso mundo encantado dos sonhos automobilísticos! Perfeito seria se todos os atributos convivessem no mesmo carro, não?

Em um veículo pensado para desempenho em cruzeiro, algumas questões passam a ser mais críticas, como uma posição confortável para longos períodos estáticos e um acerto de direção e suspensão que leve em conta a estabilidade direcional. E, claro, o motor: a estrela máxima do carro. Um motor pensado para cidade deveria ser econômico no funcionamento submetido ao duro cenário urbano, de deslocamentos curtos e temperatura não ideal, além de oferecer uma curva de torque com boa dose de potência palpável em baixas rotações. O motor estradeiro, claro, precisa de potência e funcionamento suave em rotações mais altas.
Ah, o maravilhoso mundo encantado dos sonhos automobilísticos! Perfeito seria se tudo isso convivesse no mesmo carro, não? A realidade, caro amigo, passa distante de boa parte disso. Tirando a ergonomia, que pode ser resolvida com um bom desenho industrial e ajustes variados de volantes e bancos, o resto é escolha. E se o assunto for mecânica, cada escolha implica em uma renúncia.
É uma tristeza quando a física joga contra. Isso porque não há mágica na transformação da energia, tampouco nas imutáveis leis da cinética. E os simpáticos, inteligentes e bem-pensados artifícios mitigam parte dos problemas, não todos.
Saudades do Landau
Ter um carro de comportamento dinâmico exemplar a altas velocidades exige certa dose de firmeza, o que fatalmente sacrifica o conforto na buraqueira. Mundo ideal: uma cidade livre de buracos no pavimento — realidade em muitos lugares, mas talvez inexistente no Brasil. Rodar em São Paulo dá saudades do Ford Landau ou de um ônibus Tribus com sua lendária “suspensão a ar”, como propaga o adesivo. Todas as vezes que vejo um incauto a bordo de um Mini Cooper, com seus pneus largos de perfil baixíssimo aliados àquela suspensão dura e de curso curto, sinto pena. E não se precisa recorrer a um importado para sentir desconforto: basta qualquer Volkswagen do andar debaixo com pneus da série 55 para se sentir como passageiro de uma sonda da Nasa.
No entanto, nada traz mais polêmica do que o tal torque. Esse tema é folclórico e mesmo os menos entendidos sempre têm uma frase pronta para soltar, como “motores com 16 válvulas são ruins de baixa”, referindo-se àquela apatia inicial que eles costumavam ter nas baixas rotações, em muito neutralizada por tecnologias como o variador de tempo de abertura. Mas, fato é que os motores com apenas duas válvulas por cilindro parecem ser mais apreciados nas aplicações voltadas ao uso urbano, com recompensas notáveis no comportamento de aceleração a velocidades menores — como o anda-para de semáforos — e no consumo de combustível.
Ideal seria ter um veículo apropriado a cada aplicação — um urbano para breves deslocamentos e um potente, estável e espaçoso para viagens

A Fiat não teria feito uma opção técnica dessas em sua nova geração de motores Firefly se as quatro válvulas fossem uma unanimidade. Mas para mecânica não há regra, e sim escolhas, e é notável que tenhamos ultrapassado os 10 m.kgf de torque em motores aspirados com apenas 1,0 litro de cilindrada. Quando eles surgiram, há quase 30 anos, mal chegavam aos 8 m.kgf.
Eu, particularmente, tive experiências mais prazerosas em uso urbano com os motores de duas válvulas por cilindro, em especial em uma São Paulo congestionada e de topografia acidentada. Ando 98% do tempo em cidade. E aí que mora o problema: cada caso é um caso. Ideal seria ter um veículo apropriado a cada aplicação — um pequeno urbano para breves deslocamentos e um veículo potente, estável e espaçoso para viagens com a família, porta-malas carregado e seus 120 km/h com ventos laterais.
O que resta é se contentar com as escolhas híbridas, que atendem melhor a um uso, mas demonstram mais fragilidades em outros. Se são bons na toada urbana, ficam incompletos em outras frentes. Ou são lindos iates rodoviários, mas consomem uma enormidade de combustível e dão trabalho para encontrar uma vaga adequada. É escolher o menor dos sofrimentos. Dentre todas as forças da natureza, não há nenhuma superior à força econômica. Essa, sim, determina qual o melhor carro a se fabricar e comprar.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars
Fotos: Fabrício Samahá