Em uma década de carros sem tempero, a Buick aplicou-o em altas doses a esses cupês com turbo e tração traseira
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
A década de 1980 foi um período de trevas para a indústria norte-americana. Os carros potentes e os grandes motores dos anos 60 foram condenados à extinção tanto pelas crises do petróleo, deflagradas em 1973 e 1979, quanto pelas normas de controle de emissões poluentes e a pressão das companhias de seguro por automóveis menos velozes. O resultado foi que os carros encolheram e ganharam motores menores e “amordaçados” para consumir e poluir menos. Os bons tempos ficaram para trás.
Sobraram uma demanda reprimida e, dentro dos fabricantes, alguns aficionados que gostariam de atendê-la. Na General Motors a semente germinou na divisão Buick, que lançava em 1978 a segunda geração do sedã e do cupê Regal, linhagem iniciada em 1973. Sua origem era a plataforma G de tração traseira da corporação, compartilhada com modelos como Chevrolet Monte Carlo e El Camino, Oldsmobile Cutlass Supreme e Pontiac Grand Prix. Versões mais apimentadas como Monte Carlo SS, Hurst/Olds e Grand Prix 2+2 haviam comprovado seu potencial para receber motores potentes.
Redesenhado em 1978, o Regal recebia opção de motor V6 turbo (carro em prata), que serviria de base para as versões Grand National e GNX
A GM tencionava encerrar a aplicação dessa plataforma e migrar para a tração dianteira, então em voga, embora não fosse nova na empresa (os grandes Cadillac Eldorado e Oldsmobile Toronado já a empregavam nos anos 60). Lloyd Reuss, que na divisão Chevrolet havia trabalhado no “quente” Vega Cosworth, estava agora na Buick e percebia que a marca perdia mercado rapidamente para importados como Audi e BMW. Assumir um perfil mais esportivo e de desempenho seria um caminho para recuperar sua imagem.
O fim da linha estava a caminho, com a decisão de compartilhar mais motores, e os aficionados de dentro da empresa precisavam agir rápido: entrou em ação a McLaren
Enquanto as colegas de grupo recorriam aos clássicos V8, a Buick seguia caminho diverso. Com apenas um oito-cilindros em produção (o 350 de 5,75 litros), preferiu aplicar ao V6 uma solução então rara naquela indústria: o turbocompressor. Lançado em 1978, o Regal turbo usava o tradicional motor de 231 pol³ (3,8 litros) e comando de válvulas no bloco da marca, que em versão aspirada chegaria ao Brasil em 1998 no cofre do Holden Commodore, aqui renomeado Chevrolet Omega. Suas origens remontavam ao 198 (3,25 litros) lançado no modelo Special em 1962.
Carburador de corpo quádruplo e potência de 165 cv (havia versão com carburador duplo e 150 cv) garantiam ao turbo um desempenho compatível com bons V8, enquanto um sensor eletrônico detectava detonações. Problemas de funcionamento e pouca robustez, porém, fizeram despencar as vendas, expressivas de início. Não adiantou seu êxito nas competições da Nascar — a GM faturou o campeonato de construtores ano após ano de 1978 a 1988, sendo os de 1981 e 1982 pela Buick.
Com 200 cv, mais potente que Camaro ou Monte Carlo, o Grand National acelerava de 0 a 96 km/h em 7,5 segundos e superava o BMW 635 CSi
Para comemorar a conquista na Nascar o Regal aparecia em 1982 com a série limitada Grand National, em dois tons de cinza e com pacote aerodinâmico. Com o V6 aspirado de 4,1 litros, carburador e apenas 125 cv, seu desempenho não convencia — poucos saíram com o V6 3,8 turbo, então com 175 cv. Tudo mudava com a reedição para 1984, agora com turbo de série. Oferecido só em preto com interior em cinza e preto, o Grand National dispunha de injeção multiponto sequencial, 200 cv e torque de 41,5 m.kgf. Era mais potente que Chevrolet Camaro Z28 (190 cv), Monte Carlo SS e Hurst/Olds (ambos com 180 cv) e pouco menos que o Chevrolet Corvette (205 cv).
Teste da revista Car and Driver apontou aceleração de 0 a 96 km/h em 7,5 segundos e quarto de milha (0 a 402 metros) em 15,7 s, apesar do peso acima de 1.600 kg e da transmissão automática de quatro marchas, a única disponível — nunca houve um Regal turbo com caixa manual. Era mais rápido que o BMW 635 CSi e os modelos V8 de mesma plataforma da GM. A tomada de ar ressaltada no capô, embora falsa, sugeria desempenho ao longo cupê de 5,10 metros de comprimento e 2,75 m de distância entre eixos, dotado de painéis removíveis no teto (o chamado T-Top) e rodas de 15 pol com pneus 215/65. No interior havia conta-giros e manômetro do turbo, ambos digitais.
A revista confrontou-o aos similares da Chevrolet e da Oldsmobile: “Embora com 3/4 da cilindrada dos V8, ele supera facilmente a ambos. O V6 turbo é um ótimo motor à procura de um ótimo carro: seu desempenho é tão bom que ele pede uma plataforma mais estável que a do Grand National. Promete tudo, mas fica realmente infeliz em estradas ásperas e sinuosas ao mesmo tempo. Os amortecedores parecem desistir do trabalho”.
“O Buick mais quente fora de um oval inclinado”, referia-se o anúncio do Grand National às pistas da Nascar; no GNX (à direita), a alusão a um bom investimento
A agência de publicidade apelidou-o de “Darth Buick”, em alusão ao personagem Darth Vader da série Guerra nas Estrelas (Star Wars), alcunha logo adotada pelo mercado. As coisas esquentavam em 1986 com a adição de resfriador de ar, com o qual o V6 passava a 235 cv e 45,6 m.kgf, e ainda mais no ano seguinte, quando o cupê oferecia 245 cv e 47,7 m.kgf. O Grand National agora cumpria o 0-96 em 6 s e o quarto de milha em 14,7 s, conforme teste da Motor Trend: um legítimo representante dos “carros musculosos” dos anos 60, quando acelerar não era atividade vista como inimiga pública número 1.
Na revista ele deixou para trás Camaro IROC-Z, Corvette, Dodge Daytona Z, Ford Mustang GT e Thunderbird Turbo Coupe e Pontiac Trans Am. Só não sobressaía em velocidade máxima, 197,6 km/h, a marca mais modesta entre os sete. Pelo projeto aerodinâmico antiquado, o cupê apresentava elevada sustentação dianteira em alta velocidade, o que levou a Buick a aplicar um limitador a 201 km/h (125 milhas por hora). O mesmo motor testado em um Pontiac Trans Am sem restrição de velocidade resultaria em mais de 255 km/h, o que dá noção de seu potencial.
Contudo, o fim da linha para a plataforma G estava a caminho, como indicava o encerramento do sedã Regal em 1985. Pior: com a decisão da GM de ampliar o compartilhamento de motores e engenharia entre as divisões, não haveria mais carros turbo depois de 1987. Os aficionados de dentro da empresa precisavam agir rápido. Entrou em ação a McLaren, empresa de preparação do grupo American Sunroof Company ou ASC, sem relação com a homônima inglesa. Com novos turbo e resfriador de ar, cabeçotes revistos e escapamento mais livre, o V6 passou a 276 cv e 49,8 m.kgf para aplicação ao Grand National Experimental ou GNX.
Com intervenções pela McLaren o cupê chegava a 276 cv e tornava-se o GNX, produzido em série limitada; note o logotipo sob o capô (fotos: Mecum Auctions)
Instalado em cupês enviados pela Buick à ASC, o pacote incluía radiador para a caixa automática, diferencial autobloqueante, suspensão traseira reformulada e pneus mais largos atrás (255/50) que na frente (245/50) em rodas de 16 pol, mas não freios a disco traseiros — ali permaneciam tambores. A suspensão era independente por braços sobrepostos na frente e com eixo rígido atrás, ambas com molas helicoidais.
O resultado foi um cupê capaz de acelerar no teste da Car and Driver de 0 a 96 km/h em 4,7 s (bem melhor que o dado oficial de 5,4 s) e o quarto de milha em 13,5 s: desempenho de Ferrari Testarossa por um quarto do preço. Um Porsche 928 S4 automático não acompanhava um GNX na arrancada; um Corvette, muito menos. Como ocorria com alguns “musculosos” do passado, havia boatos de que o motor produzisse bem mais que o anunciado, talvez 400 cv.
“O que você poderia fazer com um?”, questionava a Road & Track, para então sugerir: “Poderia trancá-lo, pois nesta era de muitos carros ‘mesmo-mesmo’ há poucos e preciosos que serão de especial interesse no futuro. Poderia ir procurar Corvettes para constrangê-los. Havia alguns supercarros mais rápidos nos anos 60 e começo dos 70, mas eram bem mais trabalhosos de dirigir. Fazer de 0 a 96 km/h em 6 s no GNX é tão fácil que suspeito que minha filha de 16 anos o faria com 10 minutos de treino”.
Com especulação de que tivesse 400 cv, o GNX fez o 0-96 em 4,7 segundos em testes: desempenho de Ferrari Testarossa por um quarto do preço
A fórmula caiu nas graças do público. Com produção prevista de 500 unidades, vendas em poucas concessionárias e preço quase duplicado sobre o do Grand National, foram feitos 547 GNX. Outros 20.193 compradores consolaram-se naquele 1987 com o Grand National de linha, quase 10 vezes as vendas de 1985. A Buick não poderia encontrar estímulo mais eficaz para um modelo em fase final de produção.
Apesar do êxito, os planos foram mantidos: o Regal 1988 trazia nova plataforma de tração dianteira e não passava de 165 cv no motor V6 aspirado mais potente. O 3,8 turbo, então restrito a outras marcas da GM, chegaria a 1989 ao Pontiac Trans Am. Suas versões aspiradas resistiriam até 2008 com evoluções e haveria opções com compressor, mas nunca mais turbo.
O Grand National e o GNX duraram menos do que os fãs gostariam, mas sua combinação de aparência discreta — quase sinistra —, desempenho espantoso para a época e preço moderado provou que a alma dos antigos “musculosos” podia reencarnar no corpo de um carro norte-americano em plena década de 1980.
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