Quem esperaria que, da plataforma dos sedãs da série K,
pudessem nascer esportivos atraentes e de bom desempenho?
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
As duas grandes crises do petróleo, a de 1973 e a de 1979, trouxeram mudanças aos padrões do que os Estados Unidos entendiam como automóveis esporte. Os “carros musculosos” com motores V8, alguns de mais de 7,0 litros de cilindrada e potência acima de 400 cv, já não tinham lugar em um cenário de gasolina mais cara e de legislação para limite de consumo de combustível por fabricante (o CAFE), além das normas de controle de emissões poluentes e exigências de segurança as mais diversas. Os esportivos agora precisavam ser eficientes.
A Chrysler havia começado a década de 1980 em grave crise financeira, mas o êxito dos sedãs da série K — iniciada por Dodge Aries e Plymouth Reliant e ampliada por numerosos modelos — estava trazendo a recuperação de que a empresa precisava para sobreviver. Passados alguns anos, já havia espaço para que a corporação dirigida por Lee Iacocca pensasse outra vez em carros esporte, só que adequados aos padrões dos novos tempos. Na linha 1984 eram apresentados esses modelos: o Chrysler Laser e o Dodge Daytona.
O Laser e o Daytona eram versões do mesmo projeto G-24, carros esportivos
de desenho atraente, baseados na plataforma dos pacatos sedãs da série K
Poderia dar certo desenvolver esportivos sobre a plataforma da série K, concebida para carros familiares e despretensiosos? A ideia certamente dividia opiniões, mas havia precedentes de origem europeia, como o Renault Fuego e o Volkswagen Scirocco, também derivados de sedãs pacatos de tração dianteira com motor de quatro cilindros. Os japoneses seguiam no mesmo caminho e até mesmo um mito norte-americano, o Ford Mustang, estava destinado à substituição por um cupê projetado pela Mazda com tração à frente, o que acabou por não acontecer — ele se tornaria o Probe.
A Chrysler destacava que, em um teste, o carro acelerou à frente de Camaro, 300 ZX e Supra e foi considerado superior em estabilidade ao Porsche 944
O Laser e o Daytona — versões do mesmo projeto G-24 para diferentes marcas, como a Chrysler fez em toda sua história — mostravam linhas modernas para a época, com traços retos, capô em cunha, para-choques bem integrados à carroceria, grandes vidros e formato hatchback. Os quatro faróis vinham recuados em uma frente pronunciada, que estabelecia a ligação com o Daytona original, o carro de corridas da linha Charger de 1969. Limpadores de para-brisa ocultos indicavam cuidado com a aerodinâmica — o Cx era bom para seu tempo, 0,378. Parte de seu estilo havia sido antecipado em 1979 por um carro-conceito elétrico desenvolvido em parceria com a GE.
No interior de quatro lugares, a modernidade estava bem diante do motorista do Laser XE com o painel de instrumentos digitais, então uma tendência — o Chevrolet Corvette ganhava o seu no mesmo ano —, dotado ainda de computador de bordo. Requintes opcionais do modelo eram revestimento interno em couro e banco do motorista com ajuste elétrico, não oferecidos no Daytona. Os carros mediam 4,44 metros de comprimento, 1,76 m de largura e 2,47 m de distância entre eixos.
Painel digital, sintetizador de voz e ajuste elétrico do banco podiam equipar o
Laser, mais luxuoso; o motor turbo de 142 cv era oferecido para ambos
No Laser básico, no XE e no Daytona era usado o bem conhecido motor transversal de quatro cilindros e 2,2 litros da série K, com injeção eletrônica monoponto, potência de 98 cv e torque de 16,4 m.kgf. Os mais exigentes podiam optar pela versão turboalimentada da mesma unidade, dotada de injeção multiponto, que fornecia 142 cv e 22,1 m.kgf — bons valores para o peso de 1.205 kg. Essa opção equipava o Laser XE e os Daytonas Turbo e Turbo Z.
O câmbio podia ser manual de cinco marchas ou automático de três, sempre com tração dianteira — a primeira em carros esportivos norte-americanos. A suspensão, em grande parte aproveitada dos sedãs K, usava o conceito McPherson à frente e eixo de torção na traseira. No Daytona o acerto era mais firme e vinham pneus 195/60 R 15, ante os 185/70 R 14 do Laser, usados mesmo com turbo.
A publicidade não assumia modéstia: o Laser XE turbo era apresentado como concorrente de Chevrolet Camaro Z28, Ford Mustang SVO, Nissan 300 ZX, Pontiac Firebird Trans Am e Toyota Supra. A Chrysler destacava um teste independente no qual seu carro acelerou de 0 a 80 km/h em 5,6 segundos, à frente de quatro daqueles oponentes — só não superou o Mustang —, e foi considerado superior em estabilidade ao Porsche 944. Na linha Chrysler o Daytona substituía o Challenger, uma versão do Mitsubishi Galant Lambda — não confundir com o Challenger “musculoso” produzido de 1970 a 1974.
Teto com painéis removíveis e barra central era uma novidade do Daytona (foto)
e do Laser para 1986, ano em que o motor básico crescia de 2,2 para 2,5 litros
Na primeira avaliação da revista Popular Science, os dois modelos mostraram qualidades: “Com sua tendência ao comportamento neutro, tínhamos de nos lembrar que eram carros de tração dianteira. A suspensão faz um ótimo trabalho de isolar ruídos e fornecer grande aderência à pista, com um rodar bem controlado, mas não firme demais. O motor turbo é rápido e suave e obtém consumo respeitável. Embora não tão macio quanto o de alguns importados, o câmbio foi bastante melhorado em relação ao dos sedãs”.
Na Popular Mechanics, o Daytona com motor turbo também foi aprovado: “O sistema funciona muito bem. Não há retardo de atuação do turbo e a potência começa de imediato, suave e intensa, como em um pequeno V8. Apesar do motor potente, mal notamos esterçamento por torque. Dirigimos o carro em seu limite, e seria preciso um motorista muito descuidado para ter problemas. O Daytona, mesmo com peso severamente concentrado na frente, comporta-se muito bem. A transformação dos carros ‘K’ nos novos carros ‘G’ não foi fácil, mas o esforço foi muito compensador”.
O Laser XE foi colocado pela Popular Science diante do Mustang SVO (também quatro-cilindros turbo) e do Camaro Z28, com um clássico V8. “Com um acerto refinado, esse carro não se parece com qualquer Chrysler que dirigimos recentemente. É sólido, rápido e mais ágil que os outros de tração dianteira. Enquanto o Camaro tem um rodar áspero e o SVO é muito duro, o rodar do Laser é suave e firme, o que faz dele um carro agradável de uso diário capaz de grande estabilidade sem penalizar seus ocupantes”, destacou a revista. O Chrysler acelerou de 0 a 96 km/h em 11,7 segundos, pouco atrás do Mustang (11,2 s) e mais do Camaro (9,2 s), mas foi bem mais econômico que ambos e custava menos que o Ford.
Agora sem companhia do Laser, o Daytona 1987 ganhava faróis escamoteáveis;
a versão Shelby Turbo (à direita) vinha com 174 cv, suspensão e freios revistos
A versão XT do Laser era a novidade da linha 1986. Recebia rodas de 15 pol, anexos aerodinâmicos e cobertura de alumínio em forma de persiana para o vidro traseiro. No Daytona eram oferecidos pneus largos 225/50 R 15 e uma suspensão ainda mais esportiva. Ambos podiam vir com teto em “T” (com painéis removíveis sobre os bancos dianteiros, mantendo uma barra longitudinal para estrutura) e motor de 2,5 litros, 100 cv e 18,6 m.kgf no lugar do 2,2 básico.
Para o ano-modelo seguinte o Laser deixava o mercado, mas o Daytona recebia frente renovada com faróis escamoteáveis e sistema de mensagens de aviso (para atar o cinto de segurança ou verificar certas anormalidades do carro) com sintetizador de voz. A versão Shelby Z, que aproveitava a parceria com Carroll Shelby, vinha com o motor turbo modificado para 174 cv e 27,6 m.kgf por meio da aplicação de resfriador de ar, suspensão recalibrada e freios a disco também na traseira. Os adeptos do conforto podiam optar pelo acabamento Pacifica, dotado de bancos com ajuste elétrico, painel digital e computador de bordo.
O motor turbo passava a 2,5 litros no modelo 1989, chegando a 152 cv e 23 m.kgf; aparecia a versão AGS C/S Competition, com o mesmo motor do Shelby Z, e a bolsa inflável para o motorista vinha de série. A linha para o ano seguinte ganhava painel redesenhado e a opção de motor Mitsubishi V6 de 3,0 litros com 141 cv e 23 m.kgf. Tanto o V6 quanto o 2,5 turbo podia equipar a versão IROC, lançada para 1991, cujo nome fazia alusão à International Race of Champions (corrida internacional dos campeões, que reúne os melhores pilotos de diversas categorias), e um câmbio automático de quatro marchas era oferecido pela primeira vez.
A partir da esquerda: o Laser conversível da Auto-Form, o avançado Daytona
conceitual de 1987 e o de 1990, bem próximo do modelo 1992 de produção
Com a estreia do Eagle Talon e do Plymouth Laser baseados no Mitsubishi Eclipse, o antigo Daytona parecia esquecido, mas a Chrysler preparava uma revitalização para 1992. Reestilizado na frente e na traseira, ganhava faróis de perfil baixo e para-choques de linhas suaves. Surgia o IROC R/T, no qual o 2,2-litros combinava cabeçote com duplo comando e 16 válvulas (desenvolvido pela Lotus inglesa) a turbo e resfriador de ar para obter 224 cv e 30 m.kgf. Oferecida só com câmbio manual, a versão era dotada de rodas de 16 pol com pneus 205/55, freios a disco nas quatro rodas, suspensão esportiva e volante revestido em couro. Inéditos no modelo eram os freios com opção de sistema antitravamento (ABS), exceto na versão básica.
Uma versão conversível do Laser foi oferecida pela Auto-Form, empresa de Shawnee, Oklahoma. A capota de tecido com acionamento manual era guardada sob a tampa do porta-malas, que para esse fim se abria no sentido inverso ao padrão, como nos conversíveis de teto rígido de fábrica que são comuns hoje. O Daytona teve duas versões conceituais: a de 1987, com linhas bastante ousadas, e a mais moderada IROC R/T de 1990. Esta tinha formas mais arredondadas com faróis fixos, rodas de 17 pol e teto envidraçado. O motor 2,2 turbo de 174 cv enviava potência às quatro rodas.
O Daytona deixou o mercado em março de 1993, quando abriu caminho para o Dodge Avenger, feito em parceria com a Mitsubishi sobre a plataforma do Galant. Portanto, entre dois modelos de origem japonesa a Chrysler teve sua própria iniciativa em carro esporte, um passo norte-americano em uma direção que os europeus e japoneses já vinham seguindo.
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