John De Lorean construiu um esportivo inovador que deveria durar muito e logo saiu de produção, mas está voltando
Texto: Francis Castaings e Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Um carro com carroceria feita em aço inoxidável foi fabricado na Irlanda do Norte, em Dunmurray, a 10 quilômetros do centro da capital Belfast. Lá, de janeiro de 1981 a dezembro de 1982, funcionou a De Lorean Motor Company (DMC), fundada em 1973 em plena crise mundial do petróleo.
Seu fundador John Zachary De Lorean era um bem-sucedido executivo da General Motors, que fez carreira brilhante na Packard no início dos anos 50 e ingressou com apenas 24 anos de idade na GM. Na divisão Pontiac chegou a engenheiro-chefe, e na Chevrolet, diretor-geral. Na Pontiac criou e desenvolveu os projetos do famoso GTO, do Firebird (“irmão” do Chevrolet Camaro) e da linha Grand Prix. Foi vice-presidente da corporação aos 40, o mais jovem na função até então.
Mas De Lorean não estava contente. Ele queria mais, tinha um sonho: ter sua fábrica de automóveis e até ensinar à GM como se faz um carro. Sua ideia brilhante era de um carro esporte com carroceria em aço inoxidável escovado e mecânica eficiente em combustível. O responsável pelo desenho foi o famoso italiano Giorgetto Giugiaro, que havia realizado obras de arte como De Tomaso Mangusta, Maserati Ghibli e Lotus Esprit. A engenharia ficou a cargo de William Collins, ex-colega de John na Pontiac.
John De Lorean, sua esposa Cristina Ferrare e um protótipo do DMC-12: a proposta de carro de alta segurança mudou após o fracasso do Bricklin
De início o projeto ganhou a designação DSV, De Lorean Safety Vehicle (veículo de segurança), o que contribuiu para obter investimentos da companhia de seguros Allstate. Celebridades de Hollywood como Johnny Carson e Sammy Davis, Jr. e a agência de desenvolvimento da Irlanda do Norte também ajudaram a compor as finanças da empresa. Contudo, o fracasso comercial de outro esportivo com tal proposta — o Bricklin SV-1 — levou a De Lorean a renomeá-lo DMC-12 em 1976, ano em que ficava pronto o primeiro protótipo. A fábrica começava a ser erguida dois anos mais tarde.
O De Lorean marcou pelo estilo próprio e soluções interessantes, mas sua maior divulgação viria anos depois do fim como máquina do tempo no cinema
Ao ser apresentado em versão final, em 1981, o De Lorean mostrava um desenho ousado, mas empregava soluções de carros do passado: as portas como asas de gaivota eram inspiradas nas do Mercedes-Benz 300 SL e o vidro traseiro em persianas já tinha sido adotado no Lamborghini Miura e no Lancia Stratos, para citar os mais famosos. Pesadas, as portas erguiam-se por meio de barras de torção e molas a gás e tinham a vantagem de requerer menos espaço livre ao lado do carro, embora exigissem mais acima dele. Cintas facilitavam o fechamento por pessoas mais baixas.
John De Lorean queria um carro para durar de 20 a 25 anos e que não ficasse obsoleto em pouco tempo. O DMC-12 usava chassi Lotus em duplo “Y” e, no primeiro protótipo, um antigo motor de 2,0 litros e 102 cv de Citroën CX, que se mostrou fraco para as características do esportivo. A fábrica chegou a estudar a montagem central, mas optou pela posição atrás do eixo traseiro.
Portas “asas de gaivota” com pouca área de vidro descendente e persianas na traseira contribuíam para o aspecto ousado e diferente do De Lorean DMC-12
Melhor solução foi o motor PRV (projeto conjunto Peugeot-Renault-Volvo) com seis cilindros em “V” e 2,85 litros, usado em modelos como Peugeot 504 e 604, Renault 30 e Volvo série 200, associado à transmissão do Alpine A 310. Seria um carro relativamente fácil de manter, graças a peças comuns a vários modelos do mercado europeu. Dotado de injeção eletrônica, bloco de alumínio e potência de 141 cv, o PRV era equilibrado, robusto e moderno, mas não chegava a entusiasmar no DMC-12: trazia desempenho modesto se comparado ao dos concorrentes.
Embora De Lorean visasse aos compradores de Chevrolet Corvette nos Estados Unidos, seu mercado de ataque, o carro não andava muito mais que um Ford Mustang V8, de desempenho inferior ao esportivo da GM. De acordo com a fábrica, o DMC-12 acelerava de 0 a 100 km/h em 8,8 segundos e chegava a quase 200 km/h. Havia escolha entre caixa manual de cinco marchas e automática de três.
A distribuição desigual de massas imposta pela colocação do motor, com 65% do peso no eixo posterior (total de 1.235 kg), levou a De Lorean a usar rodas maiores e pneus bem mais largos atrás (235/60 R 15) que na frente (195/60 R 14). A suspensão independente nas quatro rodas seguia os conceitos de braços sobrepostos na dianteira e braço arrastado na traseira; todos os freios eram a disco.
Painéis de carroceria eram escovados sem pintura; no interior, o requinte disponível nos bons esportivos da época; atrás, motor Peugeot-Renault-Volvo V6
Quando o DMC-12 começou a ser vendido, a publicidade anunciava: “De Lorean – Viva o sonho”. A nova atração chamava a atenção. Era um carro bonito, com quatro faróis retangulares, perfil baixo, rodas raiadas e grandes lanternas traseiras em segmentos quadriculados. Quando abertas as portas, capô e tampa do porta-malas, impressionava. A carroceria usava painéis de aço inoxidável em seu tom natural em torno do corpo de plástico reforçado com fibra de carbono.
O revestimento dos bancos e volante era em couro e o interior trazia ar-condicionado, toca-fitas, alto console entre os dois bancos, volante regulável em altura e distância, boa instrumentação — enfim, tudo que um esportivo de luxo da época podia oferecer. A maior parte das janelas era fixa, salvo por uma seção inferior com controle elétrico para pagamento de pedágios e afins (solução que a Subaru repetiria no SVX de 1992). Embora evitasse o prejuízo à aerodinâmica de grandes vidros abertos, o método era necessário pelo pouco espaço nas “asas” para descer um vidro convencional.
“É um carro empolgante em vários aspectos, de estilo atraente, confortável e prazeroso de dirigir”, relatou a revista Road & Track no primeiro teste. “A carroceria mostra os menores traços de sujeira ou poeira, mas os painéis são bem feitos e o acabamento é bom. Há uma sensação aeronáutica diante do volante do De Lorean. Zero a 96 km/h em 10,5 segundos não é rápido para um esportivo de seu preço, mas a flexibilidade do motor compensa a falta de potência. O motor traseiro produz efeito de pêndulo nas sequências de curvas rápidas, o que pode fazer perder esse eixo. De Lorean tem razão para estar orgulhoso: ele adicionou uma nova dimensão ao mercado norte-americano de carros esporte”.
Estilo e acabamento do DMC-12 foram elogiados, mas não estabilidade e desempenho; seu preço era elevado para a marca ainda sem prestígio
Na Car and Driver o DMC-12 foi comparado a Corvette, Datsun 280 ZX Turbo, Ferrari 308 GTSi e Porsche 911 e ficou em quarto lugar: “Suas linhas são marcantes. O aço inoxidável parece sem graça em dias nublados, mas sob o sol ou as luzes da noite ele brilha. Em estabilidade, o De Lorean foi prejudicado em parte pela tendência de sair de traseira e em parte pela simples falta de potência. O carro fica inquieto em alta velocidade sobre mau pavimento (suspeitamos que a falta de rigidez torcional entre a ‘espinha dorsal’ e a carroceria seja o problema). Mas executivos da Califórnia terão com ele todo o flash de que necessitam. Se continuar assim, De Lorean pode ser o único norte-americano, além de Henry Ford, a deixar sua marca e seu nome nesse negócio”.
O desempenho confirmou-se inferior aos dos rivais: 0 a 96 km/h em 9,5 segundos ante 6,3 s do Porsche, 7,1 do Datsun, 7,2 do Corvette e 7,6 do Ferrari. Um problema do DMC-12 era o alto preço face à concorrência, o que pode ter sido decisivo para os carros encalharem nas concessionárias. Nos EUA ele custava US$ 25,6 mil, bem acima dos mais potentes Corvette (190 cv, US$ 16,3 mil) e 280 ZX Turbo (180 cv, US$ 17,5 mil) e não muito abaixo do 911 Super Carrera (172 cv, US$ 28,4 mil), de prestígio superior.
Foram fabricados 7.400 esportivos em 1981 e, até o fechamento da fábrica no fim de 1982, outras 1.800 unidades. Apenas 16 teriam sido convertidas para direção à direita. Duas ou três foram revestidas em ouro 24-quilates em uma promoção dos cartões de crédito American Express.
Fatores não esclarecidos levaram ao prematuro fim do projeto de John De Lorean, mas o carro ganharia fama anos depois na série “De Volta para o Futuro”
O De Lorean marcou por ter estilo próprio e soluções interessantes, mesmo que não inéditas, e construiu uma legião de admiradores. Ironicamente, sua maior divulgação viria anos depois do fim: era a máquina do tempo na trilogia De Volta para o Futuro (Back to the Future), filmes de 1985, 1989 e 1990 que fizeram enorme sucesso. O carro fez a plateia vibrar no primeiro filme e nas duas continuações, estrelados por Michael J. Fox e Christopher Lloyd. Tinha acessórios pouco ortodoxos, incontáveis fios e canos na parte externa e, na traseira, algo como dois propulsores a jato que davam o toque futurista.
Há muita controvérsia sobre o fechamento da fábrica fundada por John De Lorean. Ele fez vários acordos com o governo britânico, prometendo até mesmo reduzir os problemas sociais da Irlanda. Envolvimento com drogas para saldar dívidas, pressão de grandes fábricas e outros fatores, que nunca ficaram claros ou provados, causaram o fim desse automóvel único.
Não para sempre, porém. Direitos sobre a marca e estoques de peças foram adquiridos em 1997 pelo empresário inglês Stephen Wynne, que lançava a De Lorean Motor Company em Humble, Texas (EUA) para montar carros a partir de peças antigas e outras atuais. Processada por John De Lorean, a empresa só em 2016 passou a aceitar encomendas para o renascido DMC-12, atualizado na mecânica — ainda não revelada, mas certamente mais potente que o antigo PRV. O De Lorean, quem diria, parece estar de volta para o futuro.
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