Apesar de produzido por mais de 40 anos, o carro que motorizou os russos esteve por aqui durante pouco tempo
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Tão logo a importação de automóveis foi reaberta no Brasil, em 1990, começamos a receber estranhos modelos da distante Rússia: quadradinhos, ultrapassados, até com conexão na frente para dar partida ao motor por manivela — uma eventualidade no severo inverno siberiano. Eram os carros da Lada, dos quais o mais famoso modelo havia surgido 20 anos antes com o mesmo desenho básico.
A VAZ (Volzhsky Automobilny Zavod, Fábrica de Automóveis do Rio Volga) foi fundada em 1966 por decisão do Conselho Ministerial da então URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em abril de 1970 começava a produzir um sedã quatro-portas, o Zhiguli ou VAZ 2101, um Fiat 124 feito sob licença da marca italiana. Além de ceder direitos de fabricação, a Fiat ajudou intensamente na construção da fábrica em Togliatti, cidade fundada para abrigar o empreendimento. O nome é uma homenagem a Palmiro Togliatti, um dos fundadores do PC, o Partido Comunista italiano.
Como na fábrica Volkswagen em Fallersleben, construída cerca de 30 anos antes (passaria a Wolfsburg só depois da guerra), era praticamente uma cidade com moradia para funcionários, usina termelétrica e tudo mais. A VAZ se notabilizou pela verticalização: quase tudo era produzido por ela, de carburadores a vidros. Era uma organização industrial viável apenas no regime então vigente no país, no qual eficiência não era a maior preocupação. Hoje é comum mais de 70% das peças de um automóvel serem adquiridas de fornecedores. Chegou a empregar 180 mil pessoas ao mesmo tempo.
VAZ 2101 para os soviéticos, Lada 1200 para exportação: surgia assim o sedã, seguido pela perua 2102, feitos sob licença da Fiat (na última foto, seu 124)
O Zhiguli — ou Lada, nome de exportação adotado em 1971 — representou para os soviéticos o mesmo que o Volkswagen para os alemães ou o Citroën 2CV para os franceses: a massificação do automóvel. De início o 2101 usava motor de 1,2 litro com comando de válvulas no cabeçote e potência de 62 cv, suficiente para alcançar 140 km/h e acelerar de 0 a 100 em 20 segundos. Com 4,09 metros de comprimento e 2,43 m de distância entre eixos, tinha arquitetura tradicional: caixa manual de quatro marchas, tração traseira, suspensões com molas helicoidais, eixo traseiro rígido.
A Lada chegou em 1990 e, apesar de problemas de acabamento e oxidação, o Laika conquistou mercado com quatro portas, espaço razoável e preço menor que o do Mille
Um 1,3 de 67 cv era acrescentado em 1974. O número 2102 identificava a perua, lançada em 1972 com motor 1,2-litro. O VAZ 2103 chegava em 1973 com quatro faróis, interior mais refinado, servo-freio e motor 1,5 de 75 cv. Dois anos depois aparecia o 2106, com motor 1,6 de 78 cv projetado pela VAZ, embora também oferecesse os menores.
A revista inglesa Car aprovou o 1200 em 1975: “É um carro aceitável, sem vícios notáveis, não desagradável de dirigir. O volante pesado e os engates das marchas são ruins, mas compreensíveis. A suspensão foi reforçada em relação ao Fiat com pouca perda em conforto. A massiva bateria garante a partida em clima sub-subzero e o jogo de ferramentas tem tudo. Ele é muito bem construído. Sensato e despretensioso, oferece alta relação custo-benefício”.
Motor de 1,6 litro da VAZ e acabamento superior vinham no 2106; testes da imprensa ocidental aprovavam a construção robusta, apesar do conforto escasso
O sedã 2105, lançado em 1980 com faróis retangulares, e a perua 2104 são os que chegariam ao Brasil 10 anos depois. Havia também o 2107, de acabamento superior. No teste do sedã 1500, em 1985, a Car analisou: “O motor é flexível, mas com potência restrita. Mesmo assim, pode manter 130 km/h o dia todo. O consumo é aceitável como o carro. O acabamento não é bom: embora com construção sólida, os materiais são de baixa qualidade e pintura e solda são pobres. O Lada não tem qualquer estilo, mas parece sensato”.
Caixa de cinco marchas e até uma transmissão automática de três marchas da GM apareciam em 1986. Injeção eletrônica e catalisador eram adotados em 1992 para reduzir as emissões poluentes. Nos anos 80 e 90, cerca de 60% da produção era exportada. Construção robusta, carroceria com chapa espessa e resistente à corrosão, suspensão elevada e mecânica simples e barata de manter garantiram seu êxito em mercados variados, da África a Cuba, da Nova Zelândia à Europa, sobretudo para usos como táxi, carro policial e de serviços públicos.
A marca usava nomes diferentes para exportação, como Riva (no Reino Unido e no sedã na Alemanha), Nova (perua na Alemanha), Clásico (Equador), Kalinka (Espanha, França, Portugal), Signet (Canadá), Sputnik (Cuba) e Laika (Argentina e Brasil), esta a raça da cadela Kudriavka que os soviéticos enviaram ao espaço no Sputnik II em 1957.
Sedã 2105 e perua 2104 chegavam ao Brasil em 1990, junto de Niva e Samara; em vez de Laika, como aqui, em outros mercados tinham nomes como Riva e Nova
Na década de 2000 o Lada usava motores de 1,2 a 1,7 litro a gasolina com injeção, com 60 a 80 cv, e um 1,5 a diesel de 53 cv, projeto da VW para o primeiro Golf. Ao sair de produção, em 2012, acumulava mais de 14 milhões de unidades. Além da Rússia ele foi fabricado no Casaquistão, no Egito e na Ucrânia. Hoje a empresa faz parte da aliança Renault-Nissan e produz carros como Vesta e XRay.
Os russos o levaram às pistas de corrida com motores preparados de 1,3 litro/135 cv, 1,6 litro/150 cv e 1,8 litro/240 cv, este com turbo e 16 válvulas. Curioso é o Lada com motor Wankel de pistão rotativo, cuja produção começou em 1980 com um só rotor e 70 cv, passando depois a dois rotores (654 cm³ cada) e 120 cv. Destinado a polícias e ao serviço de segurança do estado KGB, andava bem, mas a durabilidade era crítica.
Sedã e perua Laika chegaram ao Brasil em 1990 ao lado do mais moderno Samara e do jipe Niva, por meio de um distribuidor panamenho, com motores de 1,5 e 1,6 litro com carburador (75 e 78 cv, na ordem). A Lada foi a primeira marca a estabelecer importação oficial por aqui. Apesar da robustez, o carro decepcionava pela qualidade de acabamento, sofria problemas de oxidação e pintura (inerentes à longa viagem pelo Panamá) e não tinha o carburador adequado à gasolina nacional com álcool.
Mas conquistou seu mercado: oferecia quatro portas, espaço razoável para passageiros e bagagem e preço menor que o de um Uno Mille, mesmo não usufruindo a redução de IPI de 40% para 20% a modelos de 1,0 litro. Contribuiu para seu sucesso a campanha publicitária que associava com humor ao Lada a imagem do primeiro-ministro russo Mikhail Gorbachev — responsável pela perestroika, reestruturação econômica que marcou o fim do comunismo na Rússia no fim da década de 1980.
Já ausente do Brasil, onde ficou só até 1995, o Lada recebeu poucas mudanças até sair de linha em 2012; mais de 14 milhões deles foram fabricados
O Laika tinha características interessantes. A chave de ignição e partida à esquerda do volante, uma tradição da Porsche, facilitava aos mecânicos ligar o motor de fora do carro e a bomba de combustível admitia operação manual. Os tambores de freio traseiros eram de alumínio e aletados (a matéria-prima do material, a bauxita, é abundante na Rússia), o que contribuía para reduzir a massa não suspensa.
Inteligente era o sistema de duplo circuito hidráulico de freios, um dianteiro-traseiro e outro só dianteiro: em eventual falha sempre se contava com atuação na dianteira, a mais importante. Havia itens raros em modelos nacionais do segmento: conta-giros, cintos laterais traseiros de três pontos, ajuste de altura do facho dos faróis, duas luzes traseiras para neblina — e, no conjunto de ferramentas, bomba manual para encher pneu.
A derrocada da operação Lada no Brasil começou com a queda de Gorbachev em setembro de 1991, passou pela instabilidade do importador e terminou quando a alíquota do imposto de importação passou de 20% para 70% em fevereiro de 1995. A marca suspendeu a importação do Laika e, mais tarde, a operação no País, que resistira graças ao robusto Niva. Cerca de 30 mil dos carros russos foram vendidos aqui.
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