Os carros da MVS tinham estilo, requinte e desempenho,
mas conviveram com turbulências no comando da empresa
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Apesar de sua notável tradição em carros esporte no período anterior à Segunda Guerra Mundial, com marcas como Bugatti, Delahaye e Talbot-Lago, a indústria francesa havia quase que abandonado esse tipo de automóvel na segunda metade do século passado — com exceção da Alpine, depois absorvida pela Renault. Na década de 1980, porém, dois franceses decidiram acrescentar um capítulo à história dos esportivos de seu país.
O projetista Gerard Godfroy e o engenheiro Claude Poiraud deixaram a Heuliez — construtora de carros especiais, alguns deles para atender a grandes fabricantes — para fundar em 1984 a MVS ou Manufacture de Voitures de Sport (fábrica de carros esporte). No mesmo ano a dupla apresentava no Salão de Paris um protótipo de esportivo, o Ventury, com motor de Volkswagen Golf GTI e suspensões de Peugeot 205.
O MVS Venturi combinava carroceria de plástico, motor V6 de 200 cv e suspensões
sofisticadas; a versão Transcup (à direita) trazia teto retrátil com três seções
Com a grafia alterada para Venturi, o primeiro modelo da MVS chegava às ruas depois de dois anos com bons argumentos, a começar pelo desenho. Era um elegante cupê c0m frente baixa, faróis escamoteáveis, maçanetas embutidas e para-choques bem mais integrados ao desenho do que era habitual na época. Havia alguma semelhança com modelos da Lotus e até com o Ferrari 348, que seria lançado só em 1989. O interior cativava pelo acabamento luxuoso, com revestimento dos bancos em couro Connolly (fornecedora de marcas como Bentley e Rolls-Royce), apliques de madeira no painel, console e portas e ajuste elétrico dos bancos. Comandos de carros de grandes fábricas podiam ser encontrados, uma medida comum em modelos de produção reduzida.
Com 408 cv no motor biturbo, o 400 GT fazia de 0 a 100 em 4,5 segundos e seus freios de carbono-cerâmica eram os primeiros em produção
Compacta (4,09 metros de comprimento, 2,40 m de distância entre eixos), a carroceria de muito boa aerodinâmica (Cx 0,31) era feita de plástico reforçado com fibra de vidro sobre chassi tubular de aço. O motor central-traseiro havia sido substituído por um bem mais vigoroso, coerente com suas pretensões: cedido pelo Renault Alpine GTA, o PRV (projeto conjunto entre Peugeot, Renault e Volvo) V6 de 2,5 litros com turbocompressor desenvolvia a potência de 200 cv e o torque de 29,6 m.kgf, associado a um câmbio manual de cinco marchas com tração traseira.
Com peso moderado de 1.180 kg, o Venturi prometia desempenho muito bom: aceleração de 0 a 100 km/h em 6,6 segundos e velocidade máxima de 245 km/h, compatíveis com adversários consagrados como Ferrari 328, Lotus Esprit Turbo e Porsche 944 Turbo. O conjunto sofisticado e eficiente incluía suspensão dianteira por braços sobrepostos e traseira do tipo multibraço (outra evolução em relação às do 205, do tipo McPherson, usadas no protótipo), freios a disco ventilados e rodas de 16 pol com pneus 205/55 à frente e 225/50 atrás. A direção dispensava assistência em favor de maior sensibilidade.
Com a versão 260 o motor PRV ganhava 61 cv; o Atlantique 260 era mais simples e
pesava menos; interior requintado era uma marca registrada desses franceses
Um motor de aspiração natural com 160 cv era revelado em 1988, assim como a versão Transcup: um conversível com teto rígido retrátil segmentado em três partes, de modo que o usuário podia usá-lo fechado, aberto ou como um targa, apenas com a seção dianteira a céu aberto. Mais potência vinha em 1989 na versão Venturi 260. O PRV V6 crescia para 2,85 litros e ganhava alterações em comando de válvulas e escapamento, o que se traduzia em 261 cv e importante aumento em torque para 44 m.kgf. O construtor informava máxima de 270 km/h e 0-100 em 5,3 segundos, apesar do peso mais alto de 1.250 kg. A direção agora contava com assistência e os pneus estavam mais largos na traseira, 245/45, ainda em rodas de 16 pol.
A revista Performance Car definiu-o como um “carro para pilotos, confortável e fácil de dirigir, mas feito para andar muito, muito rápido em mãos altamente qualificadas”. Confrontado a um grupo variado em 1992 — Alpine A610, Lotus Esprit Turbo, Mazda RX-7, Mitsubishi 3000 GT, Nissan 300 ZX, Porsche 968 e Subaru SVX —, foi o quarto mais rápido para acelerar de 0 a 96 km/h, com 5,9 segundos. Houve elogios também ao estilo, ao acabamento do interior e à facilidade de dirigir, mas o ruído do turbo foi alto demais e o carro apresentou falhas de qualidade. “O Venturi poderia estar no pódio. Extremamente rápido e muito bonito por dentro e por fora, ele enfrentou problemas embaraçosos. Esperávamos que um carro de quase 50 mil libras fosse mais durável”.
O desempenho do 260 melhorava ainda mais em 1990 na versão Atlantique, que vinha despojada de ar-condicionado e rádio e recebia componentes mais leves para reduzir o peso a apenas 1.100 kg. A empresa anunciava 0-100 em 5,2 segundos. Com a mudança de mãos de seu controle acionário, a MVS abandonava o nome no mesmo ano para se chamar apenas Venturi e, em 1991, estava em novo endereço. No ano seguinte o 260 ganhava a série especial LM, oferecida apenas em azul (cor oficial dos carros de corrida franceses no passado) e com rodas OZ de 17 pol.
A série especial 260 LM (esquerda) vinha só em azul e com rodas de 17 pol;
o 400 Trophy era usado em um campeonato monomarca nos anos 90
Em 1994 a Venturi lançava seu modelo de rua mais potente: o 400 GT, com 408 cv
no V6 biturbo e os primeiros freios de carbono-cerâmica em carro de série
Surgiram então projetos específicos para competição — tanto no campeonato BPR Global GT e na 24 Horas de Le Mans quanto em um certame monomarca — até que, em 1994, o carro de corridas 400 GTR foi adaptado para uso em rua, o que deu origem ao Venturi 400 GT. Embora lembrasse os anteriores, o novo esportivo tinha formas intimidadoras, com largura bem maior, anexos aerodinâmicos pronunciados e grandes tomadas de ar diante das rodas traseiras, em uma semelhança inegável ao Ferrari F40. O entre-eixos estava 10 centímetros maior e os pneus traseiros 285/35 equipavam rodas de 18 pol.
Ainda de origem Renault, o motor V6 de 3,0 litros — baseado no do luxuoso Safrane Biturbo — recebia dois turbos de maior capacidade para obter 408 cv e 53 m.kgf, ante 262 cv e 37,2 m.kgf do original. Com baixo peso (1.150 kg), seu desempenho impressionava: 0-100 em 4,5 segundos e máxima de 290 km/h, índices até então nunca vistos em um carro francês. Os freios com discos de carbono-cerâmica eram os primeiros em um carro de produção — se é que se pode assim chamar uma série restrita a 15 unidades.
Com a empresa desde 1994 em novas mãos, as do escocês Hubert O’Neill, um sucessor mais direto para os Venturis da fase MVS aparecia em 1996: o Atlantique 300. O desenho da carroceria era todo novo e bastante equilibrado, com formas mais suaves e tomadas de ar discretas — os faróis permaneciam ocultos quando apagados. Teto e portas agora usavam alumínio, sendo o restante feito em plástico e fibra de vidro. O entre-eixos de 2,50 m era o mesmo do 400 GT.
O Atlantique 300 evoluía o tema e adotava em 1998 o novo motor Peugeot-Renault;
nos anos 2000, o elétrico Fétish recolocou a Venturi no mercado de esportivos
De início foi usado o motor PRV V6 de 3,0 litros, em versões aspirada (210 cv) e com turbo (281 cv e 42,9 m.kgf), mas após dois anos a Venturi adotava o mais moderno V6 de quatro válvulas por cilindro e mesma cilindrada desenvolvido por Peugeot e Renault. Com dois turbos menores, permitia potência superior (310 cv) e, apesar do torque máximo reduzido para 40 m.kgf, as respostas em baixa rotação eram favorecidas pela ação mais ágil dos turbos. A fábrica anunciava 0-100 em 4,7 segundos e máxima de 275 km/h.
A Performance Car comparou o Atlantique ao Lotus Esprit e apontou várias vantagens no modelo francês: “É um carro mais relaxante de dirigir, com menores dimensões que o deixam mais fácil de manusear; roda com mais suavidade, produz muito menos ruídos de rodagem e tem um comando de câmbio bem superior. A qualidade de construção também é melhor”.
Apesar dos atributos dos carros, a Venturi não conseguia vendê-los em quantidade suficiente (o Atlantique não passou de 70 exemplares) e atravessou outras crises, mesmo depois de mudar outra vez de proprietários em 1996, quando passou ao grupo tailandês Nakarin Benz. Em 2000 chegava à concordata, depois de produzir menos de 700 veículos entre os vários modelos. Adquirida no ano seguinte pelo milionário monegasco Gildo Pallanca Pastor, a marca ressurgia com outros rumos — carros elétricos —, mas retomava o espírito esportivo com o roadster Fétish, apresentado em 2002 e colocado em produção quatro anos mais tarde.
Mais Carros do Passado |