Fundada há 100 anos, a empresa de Turim deu formas a marcas e
ideias muito variadas antes de se tornar propriedade da Ford
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Muitos a conhecem como a designação de versões luxuosas da Ford, do Escort e do Del Rey dos anos 80 ao recente Focus. Outros a lembrarão como parte do nome Karmann Ghia, empresa envolvida na construção do esportivo homônimo da Volkswagen, tanto na Europa quanto no Brasil. No entanto, a história da Ghia vai muito além de seu envolvimento com esses grandes fabricantes.
A Carrozzeria Ghia & Gariglio foi fundada em 1915 em Turim, na Itália, pelos sócios Giacinto Ghia e Gariglio. Nascido na cidade em 1887, Ghia começou atividades construindo carrocerias leves de alumínio para carros esportivos como o Alfa Romeo 6C 1500 que venceu a prova Mille Miglia de 1929, modelos da Fiat (como o 508 Balilla de 1933 e o 1500 Cabriolet de 1935) e da Lancia, caso do elegante Aprilia Cabriolet de 1937.
Então veio a Segunda Guerra Mundial e um bombardeio destruiu a sede. Giacinto, enquanto acompanhava sua reconstrução, adoeceu e veio a falecer em 1944. A empresa foi vendida a dois de seus amigos, Felice Mario Boano e Giorgio Alberti, que definiram um novo local como sede, próximo a uma linha férrea, para facilitar o transporte de carrocerias. O estilo de Boano teve como elemento típico as rodas encobertas.
Dos Fiats do pré-guerra aos elegantes modelos dos anos 50, a Ghia
“vestiu” sedãs e esportivos com carrocerias especiais
Dali em diante a Ghia elaborou modelos como Delahaye 135M Ghia (1948) e 235M, Alfa Romeo 6C 2500 SS Supergioiello, Ferrari 195 Inter Coupe (1950), Ferrari 340 America Coupe, Talbot-Lago T-26 (1951), Alfa Giulietta Sprint, Ferrari 212 Inter Coupe e Jaguar XK 120 Supersonic (1952), Abarth Fiat 1100, Alfa 1900 Sprint Supergioiello e Fiat 8V Supersonic (1953). O estilo Supersonic era obra de Giovanni Savonuzzi, que antes trabalhara na Cisitalia. Uma subsidiária na cidade de Aigle, na Suíça — a Ghia-Aigle —, era estabelecida em 1948 e desenhava projetos com base em Chevrolet, Citroën, Fiat, Jaguar e Mercedes-Benz.
Quando chegava à produção do automóvel,
o objetivo da Ghia era o de pequenos
volumes, como no caso do Lancia Aurelia B20
Relações com o lado oposto do Atlântico — a Chrysler dos Estados Unidos — também foram firmadas na gestão de Boano, que para auxiliar nos trabalhos contratou Luigi Segre, um jovem projetista e diretor comercial da Siata. Agora engenheiro chefe e projetista da Ghia, Segre tornou-se amigo de C. B. Thomas, vice-presidente da Chrysler e responsável pelas exportações, mas Boano não concordava com esse rumo.
As divergências entre eles levaram Boano a deixar o comando da Ghia em 1953 para trabalhar na Fiat, vendendo sua parte a Segre no ano seguinte. No período de trabalhos para a Chrysler em parceria com Virgil Exner, projetista da marca norte-americana, a empresa desenhou 18 conceitos Chrysler Ghia entre 1951 e 1953, entre os quais K-310, C-200, SS (Styling Special), D’Elegance, SS Thomas Special e Dodge Firearrow I e II, além das limusines Crown Imperial de produção.
No período de Segre a Ghia desenhou o VW Karmann Ghia, numerosos
conceitos para a Chrysler e um Lincoln que se tornaria o Batmóvel
Sob o comando de Segre a Ghia prosperou e obteve contratos de desenho para outras grandes marcas, como a Ford com o conceito Lincoln Futura (que seria transformado por George Barris no primeiro Batmóvel em 1966), a Volkswagen com o Karmann Ghia (a carroceria era construída pela alemã Karmann; por isso o nome), a Renault com o Frégate e o Dauphine (1956) e a Volvo com protótipos do esportivo P1800. Projetos com base em Aston Martin, Jaguar, Mercury, Packard e Simca também foram elaborados na época.
A Dual-Ghia, associação com o empresário Eugene Casaroll, que havia fundado a Dual Motors em Detroit, começava a operar nos EUA em 1956. Interessado em desenhos Ghia para a Chrysler, Casaroll firmou um acordo para enviar chassis Dodge modificados a Turim, onde a empresa aplicava carrocerias, e trazê-los de volta para receber motores Chrysler Hemi V8. Até 1958 foram feitos 117 automóveis nesse processo, a maioria conversíveis, vendidos a preços exorbitantes — bem acima de um Cadillac Eldorado Biarritz.
A parceria com a Chrysler prosseguiu com conceitos como DeSoto Adventurer I e II, Chrysler Flight Sweep I e II, Dart, Norseman, Special K300, Diablo, Turboflite e Plymouth XNR. Quando chegava à produção do automóvel, o objetivo da Ghia era sempre o de pequenos volumes, como exemplifica o caso do Lancia Aurelia B20 Coupé: depois de construir 98 carrocerias, ela abriu mão do trabalho e o transferiu à Pinin Farina (o nome passaria a Pininfarina só em 1961), que lidava com séries maiores.
O estranho Selene, o Floride, o 450 SS e um ousado Ferrari são dos anos 50;
modelos Dual-Ghia derivaram de associação com norte-americanos
O talento de Pietro Frua era adquirido em 1957 pela Ghia, que o contratou como chefe de estilo. Tom Tjaarda, um norte-americano de origem holandesa, ingressava na empresa em 1959 para elaborar projetos como o Selene I (do mesmo ano), o Innocenti 950 S Ghia Spider e a parte traseira do VW Karmann Ghia de segunda geração, o Tipo 34 (ambos em 1960).
Com a morte de Segres, em 1963, a parceria com a Chrysler era encerrada — Exner já não trabalhava na marca de Detroit havia dois anos. O Turbine Car, que testava a aplicação de turbinas a gás a automóveis, foi o último modelo da empresa com desenho do estúdio, mas ainda seria produzida uma série de 50 unidades do Ghia 450 SS, de 1966, um cupê com chassi tubular e motor Chrysler V8 de 4,5 litros e 235 cv. Em 1965 um jovem italiano assumia o comando do estilo: Giorgetto Giugiaro, que em 1968 abriria o próprio negócio, a Studi Italiani Realizzazione Prototipi — e mais tarde a Italdesign, ainda em atividade.
Aquela foi uma década conturbada para a Ghia. Com a morte de Segre, Gino Rovere assumia a gerência geral, mas falecia já em 1964, sendo então substituído por Giacomo Gaspardo, ex-secretário de Segre. A empresa passava em 1966 às mãos de Ramfis Trujillo e no ano seguinte à Rowan Controller Co., de Westminster, Maryland, EUA, que indicou Alejandro de Tomaso como presidente do conselho.
O Ghia 450 SS usou motor Chrysler após o fim da parceria com a marca;
nos anos 60 e 70 seriam feitos o Maserati Ghibli e vários De Tomasos
Para a De Tomaso a Ghia desenhou os carros esporte Mangusta (1966) e Pantera (produzido pela Ford de 1970 em diante), os luxuosos Deauville (1971) e Longchamp (1972), os conceitos Zonda (1971) e Montella (1973) e até um carro de Fórmula 1 para a equipe Williams com motor Ford Cosworth. O Mangusta tinha chassi e carroceria feitos na própria Ghia, para então receber o trem de força na De Tomaso, em Modena. Trabalhos com outras marcas no período incluíram Fiat 1500 GT e Renault R8 Coupé em 1964, Duesenberg Model D, Fiat 850 Vanessa e Maserati Ghibli em 1966, Iso Rivolta Fidia e Oldsmobile Thor (com base no Toronado) em 1967 e Maserati Simun (1968). O Ghibli também tinha as carrocerias produzidas pela empresa.
Tjaarda, que havia passado a trabalhar na Pininfarina em 1961, retornava à Ghia em 1967 para substituir Giugiaro. Ele atuou em modelos como o conceito Serenissima (do mesmo ano), o Isuzu Bellett GT e o Lancia Fulvia 1600 HF Competizione (1969). Mas a gestão de De Tomaso foi turbulenta — o argentino era considerado muito difícil de lidar, o que levou vários dos projetistas a deixar a empresa no período. Sem conseguir tornar as operações lucrativas, a Rowan vendia 80% das ações em 1970 à Ford, que manteve De Tomaso no comando. Os 20% restantes seriam comprados do próprio argentino em 1972.
Sob o guarda-chuva da Ford, nos anos 70, a Ghia deu formas a conceitos
os mais diversos (alguns bem estranhos), ao Mustang II e ao Fiesta
Começava ali um longo período de projetos para a marca do oval azul. Poucos foram para produção, como o Mustang II de 1974, o primeiro Fiesta de 1976 e o Topaz, lançado nos EUA em 1982, mas o estúdio notabilizou-se pela capacidade de transformar esboços em modelos de estilo, e estes em protótipos funcionais, com grande agilidade. Quando o presidente da Ford Lee Iacocca gostou de propostas de estilo da Ghia, bastaram dois meses para que ele pudesse dirigir protótipos construídos em Turim para o que se tornaria o Mustang II.
Houve também numerosos conceitos com e sem a marca Ford: nos anos 70, City Car (1970), GT-70 (1971), Mustela II (1973), Coins (1974), Urban Car (1975), Corrida e Prima (1976), Megastar (1977), Fiesta Tuareg, Lucano, Megastar II, Microsport e Mercury XM (1978), Navarre e Probe I (1979). Da década seguinte foram Granada Altair, Mustang RSX e Pockar (1980), Avant Garde, Cockpit, Shuttler e Super Gnat (1981), Brezza, Mini Max e Quicksilver (1982), Barchetta e Trio (1983), Vignale Mustang e Vignale TSX-4 (1984), Probe V e Urby (1985), Vignale TSX-6 (1986), HFX Aerostar e Lincoln by Vignale (1987), Saguaro e Via (1989).
Dos anos 80 até seu fechamento, em 2001, a Ghia criou numerosos
estudos com base Ford, um deles (o Streetka) colocado em linha
Nos anos 90 a série prosseguiu com Fiesta Bebop, Zag e Zig (1990), Connecta e Focus (1992), Aston Martin Lagonda Vignale (1993), Arioso (1994), Alpe, Lynx, Saetta e Vivace (1996) e Turing Ka (1998). O conversível Streetka (2000) e o Forty Nine (2001) foram seus últimos trabalhos, pois as atividades encerravam-se em 2001 — o Streetka acabou entrando em produção pela Pininfarina. Em seus últimos 18 anos, desde 1973, a Ghia esteve sob o comando de Filippo Sapino.
De 1973 em diante, a Ford aplicou o nome Ghia — com direito a um elegante brasão — a versões luxuosas em mercados europeus (Capri, Cortina, Granada, Escort, Fiesta, Focus, Mondeo, Orion, Scorpio, Sierra), norte-americano (Capri, Granada, Mustang), brasileiro (Del Rey, Escort, Focus, Mondeo) e australiano (Fairlane, Fairmont, Taurus, Territory). O emprego mais longevo foi no Fiesta, que o manteve no mercado inglês entre 1977 e 2008. Com sua substituição gradual pelo nome Titanium, o uso do logotipo Ghia foi encerrado em 2010.
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