As novas gerações não se interessam mais pelo automóvel, uma tendência que parece envolver vários fatores
Já se vão mais de 20 anos, mas me lembro como se fosse ontem a euforia de completar 18 anos. Contava dia após dia para obter a tão sonhada habilitação e poder sair pelas ruas ao volante, sem depender de mais ninguém. Liberdade, independência… O primeiro dia em rodovia, as primeiras escapadas a uma serra rumo a Campos de Jordão ou ao litoral, o primeiro carro próprio — e tudo o mais que, na visão de um jovem dos anos 90, só poderia ser feito ou só teria graça de verdade com um automóvel.
O Fiat Uno rodadinho podia não ser grande coisa, mas merecia uma limpeza todo sábado, uma cera de 15 em 15 dias, alguns acessórios para se diferenciar dos Milles que enchiam as ruas. E o carro não estava em meu dia a dia apenas ao dirigir: também nos papos com os amigos, na parede do quarto, nas revistas que já por 10 anos enchiam estantes.
Dos muitos carros fantásticos de teste, apenas um despertou curiosidade no filho de 13 anos: o Nissan Leaf, sem motor a combustão
Quantos jovens passam por isso hoje? O fenômeno, que já vinha sendo identificado no Brasil e em outros países, parece cada vez mais claro em todo lugar, das metrópoles às cidades menores. Os adolescentes e jovens desde a chamada Geração Y — a quem alguns denominam millenials —, nascidos da década de 1990 em diante, não apenas estão desinteressados em dirigir e em obter sua habilitação: também descartaram o automóvel de seus sonhos de consumo, aquela visão tão familiar aos leitores do Best Cars.
O cenário que captei em recentes conversas com outros pais apresenta forte contraste com o que minha geração e as anteriores viveram em sua juventude. Conta um amigo que, da sala escolar de seu filho de 15 anos, apenas três rapazes mostram interesse em carros. Relata outro: seu filho de 20 anos não pretende tirar habilitação tão cedo, tampouco seus colegas. Diz um terceiro, meu colega de profissão: dos muitos carros fantásticos de teste que ele já levou para casa, apenas um despertou curiosidade no filho de 13 anos — o Nissan Leaf, justamente um elétrico, sem o motor a combustão que causou paixão em tantas gerações.
A impressão que resulta dessa pequena amostragem é confirmada por pesquisas no exterior. De acordo com o departamento de transportes dos Estados Unidos, o percentual de jovens entre 20 e 24 anos com habilitação para dirigir caiu de 92% em 1983 para menos de 80% em 2011, enquanto na faixa de 16 a 19 anos (em geral os estados norte-americanos permitem dirigir antes dos 18) baixou de 72% para 51% no mesmo período. Ambos os índices já estão abaixo dos registrados no começo da década de 1960, quando o número de carros por habitante era muito menor.
Quais as razões para esses fenômenos, tanto a redução de jovens motoristas quanto a queda de interesse pelo automóvel? Das muitas teorias lançadas a respeito, eu concordaria com algumas.
• Os jovens não precisam mais do carro para se comunicar, interagir, conviver. Há 25 ou 30 anos só se conversava com alguém ao telefone — aquele fixo, não raro o único de casa, no qual ligações prolongadas faziam os pais reclamarem por deixá-lo ocupado — ou ao vivo. Para estar em grupo, fora de ambientes como a escola, o carro fazia toda a diferença. Os jovens de hoje não precisam dele: na verdade mantêm-se em comunicação em tempo real e integral, praticamente 24 horas por dia, com as pessoas que lhes interessam por meio da internet em geral e do celular em especial.
Se um jovem consegue circular de bicicleta ou de transporte coletivo, falta estímulo a ir atrás de algo que lhe parece entediante
• Dirigir está caro, e ter carro próprio, mais ainda. Embora seja mais fácil adquirir um automóvel hoje que nos anos 80 ou 90, quando a inflação e os juros eram altíssimos e praticamente não existia financiamento (a ponto de ter-se desenvolvido a figura do consórcio), os custos envolvidos andam pesados. A habilitação está onerosa, o combustível também, manter um seguro para o carro ficou caríssimo para o jovem, estacionar nas grandes cidades tem custos obscenos.
• Dirigir anda cada vez mais chato. Trânsito congestionado não é mais privilégio das maiores cidades: há problemas também nas médias e até em pequenas, pois o crescimento da frota circulante nas últimas décadas não foi acompanhado, em geral, por obras que ampliassem a capacidade de veículos nas vias. Se um jovem consegue cumprir seus deslocamentos de bicicleta ou de transporte coletivo sem problemas, falta estímulo a ir atrás da habilitação e do carro próprio para poder fazer algo que lhe parece tão entediante.
• A consciência ambiental anda elevada e, nesse cenário, muitos veem o carro e o transporte individual como vilões que emitem poluentes e contribuem para o aquecimento global.
Resta saber até que ponto essas razões explicam também o declínio da paixão por automóveis, que já foi tão comum entre garotos de todas as idades. Ou estaria a indústria precisando se reinventar e encontrar novos fatores para criar fascinação pelos carros?
Há quem preveja que, em um futuro não muito distante, com as ruas tomadas por veículos autônomos e outras formas insípidas de transporte, os admiradores do automóvel se reunirão em locais específicos para dirigi-los, de certa forma como fazem os adeptos do hipismo desde que os cavalos perderam seu espaço nas ruas. Se esse caminho for inevitável, resta a nós — fabricantes, jornalistas, aficionados por automóvel em geral — fazer o possível para que esse grupo de exceção seja ao menos numeroso.
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