Os detratores do álcool como combustível o chamam de jabuticaba e tupiniquim, mas não é nem uma coisa nem outra
Existem termos que me irritam profundamente, a ponto de eu parar de ler o texto que contenha pelo menos um deles. Dou dois exemplos. O primeiro deles é “jabuticaba” no sentido de que se trata de algo exclusivo do Brasil, como se ter algo que ninguém tem seja desdouro. Em primeiro lugar, jabuticaba existe desde o sul do México; em segundo lugar, é uma delícia. Não há um estrangeiro que venha ao Brasil e prove sem achar espetacular. O segundo termo é “tupiniquim”, como se algo feito por índios fosse sinal de porcaria, de algo tosco.
É tradicional dar um presente ao sheik que nos convida. O que poderia eu dar ao Sheik Mansur (recuso-me a grafar Mansoor)? Ele tem tudo o que o dinheiro pode comprar, então, dei algo pelo que ele não pudesse pagar: sementes amazônicas que se costumam chamar de marfim vegetal, que meu irmão me deu quando era responsável pela Amazônia Ocidental no Ibama, no início dos anos 2000. Disse a ele, sem mentir, que aquilo não se vendia, só se ganhava ao merecer a confiança dos índios. Coisa linda que ele transformou em uma joia.
Pela relação entre hidrogênio e carbono mais favorável, o álcool viabiliza o uso de pilhas a combustível; também emite muito menos material particulado
Os detratores do álcool como combustível referem-se a jabuticaba e tupiniquim ao falar de seu uso, tanto por ser uma tecnologia desenvolvida aqui como tupiniquim por se achar que é porcaria. Não é nem uma coisa nem outra. Na proporção de 15% de gasolina e 85% de álcool, é largamente usado na Índia e Malásia graças a uma tecnologia predominante no Brasil. Essa tecnologia nasceu nos Estados Unidos para permitir que carros viajassem entre estados com combustíveis de composição variada.
O carro flexível foi chamado de pato, na falsa crença de que esses animais voam mal e nadam mal — outro termo que me causa profunda irritação. Patos voam maravilhosamente, tanto que vão do Canadá à Argentina numa velocidade média de mais de 200 km/h. São tão inteligentes que usam a formação em “V” copiada pelas esquadrilhas militares por economizar energia. Além disso, possuem glândulas de gordura que, espalhada pelas penas, permite boiarem, o que os transforma em excelentes nadadores de superfície.
Por possuir uma relação entre hidrogênio e carbono mais favorável, o álcool viabiliza o uso de pilhas a combustível, emite muito menos material particulado e, com injeção direta, funciona muito bem — além de refrigerar melhor as camisas pois, como já discutido largamente aqui, sua evaporação é muito mais endotérmica do que a da gasolina, o que permite trabalhar com pressão maior de turbo. Como se não bastasse, é antidetonante, permitindo taxa de compressão maior.
Não foi à toa que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apresentou um motor de três cilindros projetado somente para álcool com 1,0 litro de deslocamento, três cilindros, potência de 180 cv e torque de 35 m.kgf. Também não foi coincidência a Fiat ter anunciado a intenção de desenvolver motores especialmente movidos a álcool, com eficiência superior aos que consomem gasolina. Isso me fez pensar acerca de o carro flexível ter ou não sido benéfico para a indústria sucroalcooleira no que tange aos combustíveis.
É fato que ele permitiu que o Brasil mantivesse alto o preço internacional do açúcar, variando a quantidade adicionada à gasolina; aumentando a proporção quando a tendência era cair, diminuindo a quantidade de álcool quando a tendência era subir. Só que o preço constantemente alto, como aconteceu com o café no início do século XX, suscita a concorrência e já há países competindo em quantidade conosco, o que resulta num superávit mundial de açúcar, que tende a persistir até o fim do ano que vem.
É que a produção de açúcar cresceu tanto, mundialmente, que excedeu a possibilidade de promover a conversão em álcool como saída mercadológica para os estoques acumulados nos últimos dez anos. Para essa indústria no Brasil resta apostar no álcool e no farmeseno (diesel de cana). É justamente por isso que o Ministério de Minas e Energia, bem como o da Indústria e Comércio, tem batido na tecla de que, para o Brasil, o ideal é o carro elétrico que use as pilhas a combustível, igualmente projetadas para álcool.
Ainda não nos preocupamos em maximizar a produção de álcool: com variedades geneticamente modificadas, pode-se dobrar a quantidade de açúcar por hectare
Será que eles têm razão? Creio que sim com restrições. É que os carros com essa tecnologia não podem prescindir de baterias, pois o processo de conversão da dissociação do hidrogênio em eletricidade é muito mais lento do que a demanda por energia dos motores em rotação variável. Ademais, a reação produz muito calor, o que põe em cheque a real eficiência do processo. Ocorre que ainda não nos preocupamos em maximizar a produção de álcool, como pelo uso de variedades geneticamente modificadas que se tornem tóxicas para a ferrugem e para o carvão. Só isso promete dobrar a quantidade de açúcar por hectare, ou seja, multiplicar por dois a quantidade de álcool por área. Como se isso não bastasse, a planta mais saudável permite aumentar em 50% a quantidade de açúcar ou álcool, resultando em triplicar a produção sem plantar um hectare a mais.
Há ainda o desenvolvimento de variedades passíveis de serem plantadas por semente, facilitando o replantio com cultivares mais produtivas. Ainda não falei no uso do bagaço e da palhada no álcool de segunda geração. Não me assustaria nem um pouco se, em 20 anos, a produção se multiplicasse por nove sem aumento da área plantada, com uma redução significativa do custo e, provavelmente, do preço. Incorporando o milho em áreas em que a cana não é favorável, a coisa vai longe.
Os que odeiam as jabuticabas podem soltar rojões, porque tudo o que conseguiremos com a cana, a Índia, a Malásia, os Estados Unidos e a Austrália também podem conseguir. Ao mesmo tempo, os EUA, além de usar o milho, pode aproveitar a parte aérea de suas plantações de cereais para o álcool de segunda geração. Assim, motores a combustão queimando álcool, bem como elétricos com pilha a combustível, poderiam espalhar-se pelo mundo afora. Pesando contra é que sempre há o fantasma do petróleo a preço baixo, que faria o comprador de um carro exclusivamente a álcool arrepender-se de uma opção sem volta, deixando tupiniquins, tapuias, cherokees, sioux até aborígenes australianos e neozelandeses na mão.
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