Um carro drive by wire, para dirigir por si mesmo, tem que ser pensado para que o humano seja parte da redundância
Todos nós temos frustrações na vida e eu não sou exceção. Nos meados dos anos 1980, o Professor Paul Singer (1932-2018), filiado à Unicamp, montou, juntamente com o estado de São Paulo, um centro de Economia da Tecnologia, o que hoje se chamaria de Economia da Inovação. Mandei meu currículo e recebi uma carte de próprio punho, parabenizando-me pela minha formação e experiência, informando que eu fora preterido, mas seria chamado em caso de haver desistência. Não fui e às vezes pego-me pensando no que poderia ter feito.
Nunca deixei de estudar o assunto, mesmo porque, nos agronegócios, pela escassez do entendimento como indústria no campo, o espaço de pesquisa é inesgotável. Assim, a tecnologia e minha terceira paixão, a matemática, mantiveram-me próximo de tudo que anda, voa ou age com ou sem a presença humana. Os acidentes com o Boeing 737 Max foram como um ímã para minha curiosidade, e foi num artigo científico da Temple University na Filadélfia, estado da Pensilvânia, que consegui começar a entender a questão.
Sistemas falham e é preciso dar a chance de o ser humano assumir o controle: isso implica que a interface humana não pode ser abolida
Não vamos aqui discutir os acidentes, muito menos o funcionamento do MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System ou Sistema de Aumento de Características de Manobra), ao que se atribui a responsabilidade pelos acidentes, visto que este site é sobre carros e não sobre aviões. A questão aqui é outra, o entendimento da Teoria da Inovação, criação destrutiva vs. melhoria contínua.
Inovar é fazer o que ninguém tinha feito antes, mesmo que resultasse de um anseio anterior. Voar foi sempre um desejo humano, mas fazer o que Santos Dumont ou os irmãos Wright fizeram foi inovador. Motores a turbina, no entanto, foram somente melhoria contínua porque o desenho foi herdado dos motores a vapor sem pistões já empregados desde o Titanic. Tornar um avião ou um automóvel algo autônomo requer ambos, etapa a etapa, sempre procurando isolar pontos específicos da realidade, criando um modelo.
A ideia de modelo, aliás, vem justamente da preocupação do economista francês Léon Walras (1835-1910) com o fato de as variáveis envolvidas em qualquer evento serem infinitas, mas os limites de nossa inteligência só conseguirem abarcar poucas delas. Assim, um modelo não reflete a realidade, mas procura entendê-la e atuar sobre ela a partir das variáveis pretensamente mais importantes. Um modelo será tão melhor quanto mais verossímeis forem as variáveis escolhidas.
Também é a ideia de modelo que permitiu desenvolver-se a visão sistêmica dos eventos, sociais ou não. Os sistemas podem ser compostos por outros sistemas que, por sua vez, baseiam-se em modelos particulares. Talvez esse modo de pensar e de pesquisar tenha sido a maior contribuição da Economia como ciência, pois foi a partir de Walras, do inglês William Stanley Jevons (1835-1882) e do austríaco Carl Menger (1840-1921) que se puderam desenvolver máquinas complexas que imitam a sociedade em suas relações.
Interface humana
Tudo isso se aplica à condução autônoma perante o projeto do veículo em uso, seja ele um carro, seja ele um avião. O conceito inovador fly by wire (pilotar por fios), em que um computador com várias redundâncias fica entre o piloto e os atuadores, foi criado pela Airbus em 1987 com o lançamento do A-320, numa época em que os robôs estavam engatinhando e os melhores computadores móveis eram piores que o pior smartphone do mercado de hoje. Na metade dos anos 1990 o conceito foi transposto, em melhoria contínua, para o carro com o nome de drive by wire (conduzir por fios), limitado a atuar no acelerador — o que foi um grande avanço, visto que permitiu calibrar a curva de aceleração, deixando os carros mais econômicos e fáceis de guiar.
Um automóvel via drive by wire, como acontece nos aviões fly by wire, para ser autônomo, tem que ser pensado para que a interferência humana seja parte da redundância. Em caso contrário, não passará de uma gambiarra, mesmo que com alto grau de tecnologia. Só que sistemas falham e é preciso dar a chance de o ser humano assumir o controle. Isso implica que a interface humana não pode ser abolida.
O volante é herdado dos timões e os sistemas de atuação não se alteraram muito em 100 anos — tudo foi projetado para receber comandos humanos
Tomemos o sistema de direção como exemplo. O volante é herdado dos timões e os sistemas de atuação não se alteraram significativamente nos últimos 100 anos. Tudo foi projetado e executado para transmitir sensações e a receber comandos humanos. Veio a assistência hidráulica, depois a eletro-hidráulica e finalmente a puramente elétrica, sempre atuando sobre um mecanismo que — repito — se destina a transmitir sensações e receber comandos humanos.
Só recentemente algumas marcas anunciaram sistemas de direção capazes de autoalinhamento conforme a aceleração, o tipo de piso até a distribuição de peso no veículo, assegurando que o carro siga fielmente a trajetória. A Bose, fabricante de equipamentos de áudio, desenvolve uma suspensão ativa capaz de, via sensores infravermelhos, copiar o piso, esticando e encolhendo a torre consoante as imperfeições do solo. Uma solução como essa é necessária para o carro autônomo, que não poderá rodar desviando-se de irregularidades e buracos. O sistema de freio também pode ser by wire, atuando de modo independente roda a roda e corrigindo eventuais deslizes do ser humano.
Resumindo, antes que sequer se pense em tirar o homem do comando, é preciso que todos os sistemas embarcados já não precisem dele e que sejam capazes de conversar entre si. O modelo que pode assumir o ato de conduzir não pode ter surpresas: ele tem de confiar em que todos os demais sistemas façam suas tarefas com precisão, otimizando seus recursos. A condução, portanto, exige que o carro como um todo seja projetado para isso.
Não se podem fazer adaptações, como usualmente se fazem em balanças mecânicas com sensores eletrônicos. Elas jamais serão balanças eletrônicas. Continuarão requerendo superfícies planas e taras constantes para ter um mínimo de confiabilidade. A melhoria contínua tem seus limites e tem que partir de projetos inovadores. Não foi o que aconteceu com o 737 Max, nem é o que está acontecendo com os carros que nos são apresentados como autônomos.
A Economia não admite atalhos. A Boeing pretendeu economizar US$ 32 bilhões, evitando partir do zero, só que perdeu US$ 42 bilhões em valor de mercado pela queda de duas aeronaves com a morte de mais de 300 pessoas. Tomara que sirva de exemplo à indústria de automóveis.
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