Uma década após o pioneiro Gol Total Flex, a versatilidade
em combustíveis domina o mercado, mas quase não tem uso
Neste domingo, 24 de março, completam-se 10 anos do lançamento do primeiro carro nacional com motor flexível em combustível, o Volkswagen Gol Total Flex. Um marco para a tecnologia que, em 2012, equipou 87% dos automóveis novos vendidos no Brasil e já está presente em vários modelos importados.
Ao contrário do que muitos acreditam, o carro flex (de flex fuel) não é invenção brasileira: no começo da década de 1990 já rodavam pelos Estados Unidos os modelos aptos a consumir gasolina ou E85, que é o composto de 85% de álcool e 15% de gasolina vendido por lá. Por que não o álcool praticamente puro, como aqui? É que o clima norte-americano, com inverno rigoroso em parte do país, tornaria difícil a partida e pouco eficiente o funcionamento com motor frio, além de exigir um sistema suplementar de injeção de gasolina para essa condição, como temos aqui. Mais sobre ele adiante.
Também diferente do que muitos pensam é a razão de terem sido desenvolvidos tais motores nos EUA. Embora houvesse interesse em reduzir as emissões veiculares de gás carbônico (CO2) pelo uso de álcool, esse combustível não trazia vantagem econômica ao usuário. Com isso, a rede de postos no país a oferecer álcool era muito pequena (ainda hoje é) e não seria viável aumentá-la antes que houvesse demanda. A solução foi oferecer motores que pudessem também usar gasolina, como no caso de não se encontrar álcool em uma viagem. Com certeza, muitos deles nunca usaram o combustível vegetal.
Nos primeiros flexíveis nacionais, os motores foram desenvolvidos de forma conservadora em termos de taxa de compressão, que estava mais adequada para funcionar com gasolina que com álcool. No pioneiro Gol, por exemplo, a taxa de 10:1 era pouco maior que a do motor normal a gasolina (9,8:1) e ficava muito abaixo da usada pelo propulsor a álcool (13:1). O resultado era baixo aproveitamento da resistência à detonação do combustível vegetal, com reflexos negativos no desempenho (poderia ser maior com taxa mais elevada) e, sobretudo, no consumo.
O que muita gente percebeu, na prática, é que o consumo de seu flex era mais alto que o de um modelo similar a gasolina e, com álcool, chegava a anular a vantagem de preço
No início, motores de média cilindrada — 1,6 litro no caso do Gol, 1,8 no Chevrolet Corsa e 1,25 no Fiat Palio, lançados no mesmo ano — foram os escolhidos para a “flexibilização”, e não por acaso: é que o governo federal havia criado uma alíquota reduzida de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os flexíveis da faixa de cilindrada entre 1.001 e 2.000 cm³. Já os modelos de 1,0 litro existentes no Brasil, de no máximo 999 cm³, não teriam benefício tributário e ficariam mais caros ao se repassar o custo do sistema e de seu desenvolvimento. Mesmo assim, depois do VW Fox (lançado já flexível em 2003), outros “mil” ganharam a opção nos anos seguintes.
O consumidor recebeu bem a novidade, apesar de suas limitações e do custo adicional — até R$ 2.500 no caso de modelos da Honda. O litro do álcool tinha preço muito convidativo, que resultava em economia palpável mesmo depois de feitas as contas, já que seu consumo é cerca de 43% mais alto ou, em outros termos, seu rendimento por litro é em torno de 30% mais baixo (por exemplo, fazer 7 km/l de álcool em vez de 10 km/l de gasolina). Essa diferença levou à conhecida regra dos 70%, que serve de orientação para o motorista ao abastecer: se o álcool custar até 70% da gasolina, prefira-o; se ele custar mais, o derivado de petróleo é que traz previsão de menor custo por quilômetro rodado.
O que muita gente percebeu, na prática, é que o consumo de seu flex era mais alto que o de um modelo similar a gasolina, mesmo usando tal combustível, e tão alto ao usar álcool que chegava a anular a vantagem de preço — embora os dados de consumo informados pelos fabricantes prometessem um quadro mais favorável.
A razão mais provável para essa baixa eficiência estava na calibração, ou seja, a infinidade de parâmetros inseridos na central eletrônica de injeção e ignição dos motores, previstos para todas as condições de rotação, abertura de acelerador, temperatura e pressão atmosférica (que varia com a altitude). Calibrar bem um motor é processo complexo, demorado e caro; calibrar para uma ampla gama de misturas de combustíveis, muito mais. Como disse um amigo de ampla experiência na indústria, “a calibração nunca termina; apenas chega ao fim o prazo para entregar o trabalho”. É de se imaginar como, na urgência de atender à demanda do mercado, os fabricantes a fizeram na época.
Ponto de equilíbrio
A taxa de compressão um tanto baixa era outro obstáculo à eficiência. Aumentá-la até os patamares já atingidos por motores a álcool, ao redor de 13:1, não era uma medida simples: o funcionamento com gasolina seria prejudicado, pois haveria alto risco de detonação (sobretudo no litoral, pela maior pressão atmosférica) e, caso ela ocorresse, os sensores informariam à central para atrasar a ignição. Um motor “atrasado” não rende bem e, com isso, os motoristas que preferissem usar gasolina teriam um carro insatisfatório em consumo e desempenho.
Com o tempo, a indústria alcançou o ponto de equilíbrio para cada caso — ou não, já que em muitos modelos o que prevalecia era a contenção de custos ao manter a taxa baixa da versão original a gasolina. Nos motores em que a taxa mais subiu, a exemplo do Ford Zetec Rocam de 1,6 litro, houve aumento de potência de até 15% entre a unidade a gasolina e aquela flexível usando álcool. Hoje temos visto o contrário: motores que não ganham potência ao usar álcool, ou ganham pouco, e que perdem alguns cv da versão original ao manter a gasolina. São exemplos o novo Ford Fusion e o Honda Civic de 2,0 litros (em relação ao CR-V monocombustível).
Outro ponto de divergência entre as marcas e de insatisfação para muitos foi o sistema de partida a frio com o popular “tanquinho” de gasolina, herança dos carros a álcool produzidos desde o fim dos anos 70. Divergência porque nem todo fabricante pôde instalá-lo no lugar habitual, no compartimento do motor: nos carros da Honda ele foi montado atrás do para-lama dianteiro direito, envolto em uma pesada caixa de aço naval, para evitar risco de rompimento em uma colisão.
No passado houve aumentos de potência de até 15%, mas temos visto o contrário: motores que não ganham com álcool e que perdem alguns cv ao manter a gasolina
E insatisfação porque o sistema sempre foi inconveniente para os donos de flexíveis. Quem usa só gasolina não precisa dele, mas se deixar o reservatório vazio pode fazer as mangueiras racharem. Quem usa álcool, dependendo do clima, pode precisar da gasolina na partida apenas em alguns dias do ano — mas o derivado de petróleo tem vida curta, cerca de três meses, e causa problemas quando é finalmente injetado depois de longa inatividade. A Honda contornou a questão fazendo a injeção mesmo quando desnecessária, para que a gasolina não durasse muito e tivesse de ser reposta. Que sorte tiveram os países que usam E85…
Fornecedores da indústria passaram a trabalhar nesse item e, em 2009, a Volkswagen apresentava o Polo E-Flex com um preaquecimento do álcool para dispensar a injeção de gasolina. O sistema teve uso bastante restrito (apenas nessa edição limitada e, depois, no Polo BlueMotion) até ser adotado em quantidade em 2012 pelo Peugeot 308, seguido pelo Citroën C3 e outros modelos do grupo PSA com motor de 1,6 litro. Hoje equipa também o Civic de 2,0 litros e a tendência é que apareça em mais automóveis.
Embora os flexíveis tenham avançado em eficiência e eliminado inconvenientes, seu grande trunfo — funcionar com um ou outro combustível, escolhido pelo menor custo por quilômetro — perdeu-se com o tempo. É que o preço do álcool subiu tanto, nesses 10 anos, que não tem mais compensado seu consumo adicional, exceto em algumas regiões (como o estado de São Paulo) e durante parte do ano. Ou seja, para a grande maioria, um carro flex hoje é apenas um veículo a gasolina, igual aos que predominavam no País antes de 24 de março de 2003.
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