O principal combustível de nossos carros por décadas melhorou em
qualidade, mas há aspectos que poderiam ser repensados
Durante décadas, ela foi o principal combustível nos carros dos brasileiros. Perdeu terreno para o álcool nos anos 80, recuperou nos 90 e voltou a perder nos anos 2000, mas voltou a ser hoje o número 1 em grande parte do País. Embora tenha melhorado muito em qualidade com o tempo, permanece um obstáculo à importação de certos automóveis e tem aspectos nos quais avançar. O assunto é a gasolina.
Até o advento do álcool combustível, no fim da década de 1970, era com gasolina que se abasteciam todos os carros no Brasil — o diesel ficava restrito a veículos pesados e utilitários, mesmo assim em menor percentual que o de hoje, a ponto de várias marcas oferecerem caminhões a gasolina. Já na época, sua qualidade e regularidade eram fontes de preocupação para os motoristas.
A octanagem, que expressa a resistência da gasolina à detonação, era um problema sério naquele período: mesmo motores com baixíssima taxa de compressão comparada às de hoje apresentavam “batida de pino” com certa frequência. Além disso, já havia adição de álcool à gasolina nos anos 60, com o agravante de que seu teor variava de tempos em tempos entre 2% e 7%, conforme os interesses dos produtores de cana em relação ao preço do açúcar no mercado internacional. Como se vê, não é recente o poder de influência desse grupo sobre o que você coloca no tanque.
Para evitar a detonação havia a alternativa da gasolina Azul, disponível nos postos desde 1955, com 90 octanas pelo método RON ante 80 da comum (existem ainda o método MON e a média entre os dois, ou IAD, o que leva muita gente à confusão entre os números; o Best Cars prefere usar apenas RON). Muitos misturavam as gasolinas comum (“amarela”) e Azul até que desaparecesse o fenômeno prejudicial ao motor. O uso exclusivo da Azul era necessário apenas em motores de alto rendimento, como nos Willys Interlagos e 1093, no Dodge Charger R/T e no Alfa Romeo 2300. Essa gasolina superior saía do mercado em 1982.
A gasolina Azul tinha 10 octanas a mais e
muitos a misturavam à “amarela” para cessar a
detonação, fenômeno prejudicial ao motor
Até os anos 80, usava-se o chumbo tetraetila como aditivo para aumentar a octanagem. Como o elemento é altamente poluente, decidiu-se eliminá-lo e desde 1991 ele não existe mais na gasolina nacional — nem poderia, pois traria danos imediatos ao catalisador, que começou a equipar modelos brasileiros naquele ano. É por isso que se ainda se vê, em manuais e tampas de tanque, a observação para nunca usar gasolina com chumbo, que permanece disponível em países vizinhos como a Argentina (por lubrificar as sedes de válvulas, importante em motores antigos, fabricados quando essa aditivação era normal).
Nas últimas décadas a octanagem da gasolina brasileira subiu de maneira considerável, a ponto de alcançar nos anos 90 o patamar das oferecidas aos europeus, com 95 octanas RON. Com o lançamento em 1997 da gasolina premium, fornecida pela Petrobras a diferentes distribuidoras, o índice RON subiu para 98, o mesmo da super europeia. E em 2002 veio a Podium, exclusiva da rede de postos Petrobras, que com 102 octanas RON é considerada a melhor do mundo em octanagem.
A última novidade no setor é uma boa notícia: desde janeiro, toda gasolina vendida no Brasil tem o teor máximo de enxofre de 50 partes por milhão (ppm), ante a permissão de 800 ppm vigente até o ano passado (embora a Petrobras afirme que viesse produzindo com teor bem abaixo dos limites nos últimos anos). A redução traz benefícios tanto ao proprietário, com menos depósitos, menor contaminação de combustível e maior durabilidade do combustível, quanto ao meio ambiente, pelas menores emissões poluentes. No entanto, pelo menos 40 países já usam gasolina com apenas 10 ppm de enxofre e há outros, como Chile, que adotam 15 ppm. O Brasil ainda não tem previsão para outra redução do teor.
A nova gasolina, identificada como S-50 (S de sulphur, enxofre), traz alívio aos donos e fabricantes de carros com injeção direta de gasolina, sistema mais suscetível a problemas pelo teor elevado de enxofre. Além disso, permite que esse tipo de injeção passe a operar com mistura ar-combustível estratificada, que usa menor proporção de combustível em certas condições e reduz consumo e emissões. Com a antiga gasolina, trabalhar com essa mistura levaria a uma rápida saturação do catalisador.
Álcool demais, aditivo de menos
Apesar do importante atributo da octanagem em padrões mundiais, que tem permitido o uso de taxas de compressão cada vez mais altas nos carros vendidos aqui — há vários motores acima de 12:1 —, nossa gasolina ainda tem seus problemas. O maior deles talvez seja a adulteração, a frequência com que sua qualidade é prejudicada por misturas em distribuidoras e postos desonestos, mas esse é um assunto à parte.
Entre as questões, o tipo aditivado, que recebe aditivos detergentes, precisa se tornar padrão e não mais opção. A limpeza de todo o caminho do combustível, desde o tanque até as câmaras de combustão, passando por injetores e válvulas de admissão, é essencial para manter o motor em suas características ideais por longo prazo, sem resíduos e carbonização, o que afeta as emissões poluentes.
É de surpreender que tanta gente (como se pode notar em qualquer posto Brasil afora) prefira usar a comum, por uma diferença de alguns centavos por litro, e abrir mão de um motor limpo por dentro e de menores manutenções. A distribuidora Texaco bem que tomou a direção certa ao lançar em 2007 as gasolinas com aditivo de limpeza Techron, fornecido em dois níveis, um deles em substituição à comum. Com isso, mesmo os interessados em menor custo de abastecimento passavam a usar algum teor de aditivo — mas a venda da rede de postos da empresa ao Grupo Ultra, que a converteu à marca Ipiranga em 2012, pôs fim à iniciativa.
O teor de álcool traz um problema
adicional: requer extensa adaptação dos
veículos importados para seu uso no Brasil
Em 2009 a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) havia determinado a aditivação de toda gasolina vendida no País a partir de 2014. No entanto, por uma dessas trapalhadas governamentais que cada vez mais se tornam a cara do Brasil, a medida foi adiada para julho de 2015 por uma divergência entre a agência (que quer a aditivação nas refinarias) e a Petrobras, que prefere deixar a tarefa às distribuidoras.
Outra questão: o Brasil é o único país que adiciona entre 20% e 25% de álcool à gasolina (o teor deveria ser de 22%, mas tem variado conforme a pressão dos usineiros junto ao governo federal). Embora benéfico à octanagem e à redução das emissões de gás carbônico (CO2), o álcool reduz o poder calorífico do combustível, ou seja, o carro com a chamada E22 roda menos quilômetros por litro que com gasolina pura — ou com menos álcool — de igual octanagem. Vários países adotaram a gasolina E10, com teor de álcool de 10%, com foco na menor emissão de CO2, mas oferecem a pura a quem preferir.
O teor de álcool traz um problema adicional: requer extensa adaptação dos veículos importados para uso no Brasil. Esse problema já foi maior quando não existia E10 lá fora, pois muitos fabricantes previam apenas gasolina pura, ou E0, o que exigia alterações bem mais abrangentes para a proteção ao maior poder corrosivo do derivado da cana. Com motores e linhas de combustível já adequados à E10 em âmbito praticamente mundial, hoje é comum que a E22 possa ser usada sem problemas.
Em alguns casos é preciso reprogramação da central eletrônica; em outros, não. Mesmo assim, é sempre necessário validar o veículo, o que demanda onerosos testes — e ajuda a explicar por que muitos carros interessantes não são vendidos no Brasil.
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