Polo contra Argo, Kwid contra Mobi, Toro contra Oroch: os fabricantes sabem o que os adversários estão preparando
O telefone teria tocado no escritório do departamento de Marketing em Betim, MG, na noite da última segunda-feira, enquanto todos liam (no Best Cars, claro) a avaliação do novo concorrente e conferiam seus preços.
— Alô?
— Meu caro, aqui é seu colega do Marketing da Toyota. Gostaria de me solidarizar nesse momento difícil.
— Obrigado. Não foi mesmo fácil de digerir. Você viu aquele quadro de instrumentos? As cinco estrelas no Latin NCap? Turbo e injeção direta por aquele preço? Se ao menos tivessem usado o I-Motion… Mas por que me ligou? Logo você?
— Porque ninguém conhece essa sensação melhor que nós. Esqueceu 2012, quando lançamos o Etios junto com o HB20?
A piada, uma versão mais enfeitada da que circulou em comentários sobre o novo Volkswagen Polo no Best Cars esta semana, tem sua razão de ser. Não deve estar sendo fácil para a Fiat ver seu Argo, ainda fresco no mercado, ser bombardeado pela novidade alemã com tão fortes argumentos — sem trocadilhos. Se o Polo é realmente melhor produto e em qual margem, é para confirmarmos adiante em um detalhado comparativo, mas tudo indica que boas noites de sono serão escassas no comando da fábrica ítalo-mineira por algum tempo.
O Duster chegou em 2011 sugerindo arrependimento a quem tivesse comprado um SUV, mas a música seria outra se o novo Ecosport já estivesse no mercado
E teria sido a segunda vez em poucas semanas. Em junho a Renault revelou os preços do Kwid e em agosto começou a vender o concorrente direto do Mobi. Um carro com motor moderno e muito econômico em todas as versões (não só na superior), plataforma levíssima e concebida para seu porte (não compactada de modelo existente) e ainda mais barato em paridade de conteúdo? “Ah, se ao menos o porta-malas dele fosse pequeno como o nosso…”, alguém deve ter desejado nas cercanias de Belo Horizonte.
Justiça seja feita: a Fiat teve recente momento de glória sobre a mesma adversária. Em setembro de 2015, com a Renault Duster Oroch ainda quente, Betim começou a divulgar imagens e informações da Toro a ser lançada em fevereiro seguinte. Da noite para o dia a picape dos franceses, pioneira em um segmento intermediário, ficou parecendo um carro romeno dos tempos socialistas: não havia comparação em estilo, dimensões, transmissão automática e refinamento interno e ao dirigir, sem falar nas opções de motor turbodiesel e tração nas quatro rodas. Embora a Oroch tenha seus trunfos, não deve ter sido fácil.
Como não foi em 2012. No ano anterior o Duster chegara ao mercado sugerindo arrependimento a quem tivesse comprado um utilitário esporte antes… como o Ford Ecosport. “Sorria, meu bem, sorria da infelicidade que você procurou”, cantava o comercial. Logo o veterano Eco deu lugar a um bem mais moderno e refinado, que encerrou a sensação de superioridade do rival. Mais uma vez, havia — até hoje há — argumentos a favor do Renault, como espaço interno e para bagagem, mas é certo que a música não teria sido escolhida se o Duster levasse mais um ano para estrear.
Cinco anos antes, em 2006, o Mégane da mesma Renault ainda curtia o sabor de novidade quando ganhou um balde de água gelada: o Honda Civic de oitava geração, futurista por fora e por dentro. O fenômeno também ocorreu entre outras marcas. Como teria lembrado o marqueteiro da Toyota na piada, o HB20 surgiu atraente em 2012 ao mesmo tempo que o Etios, com seu ar 20 anos mais velho. “Ah, se pelo menos eles colocassem uma balança Filizola no meio do painel como a gente…”.
Vários casos na história
Há casos memoráveis na história da indústria. Em 1968 a Volkswagen lançou seu primeiro sedã nacional, o 1600 L, no mesmo Salão do Automóvel que o Ford Corcel e o Chevrolet Opala. Feio em comparação e sem nome, o irmão do Fusca foi relegado aos taxistas, ganhou o apelido do cineasta Zé do Caixão e durou apenas três anos. A VW deve ter aprendido a lição, pois em 1974 via-se na posição oposta: seu Passat, o mais moderno carro nacional, deixava antiquados o Corcel e o recém-lançado Dodge 1800.
Em 1981 a Ford apresentava o Del Rey, alternativa econômica no segmento de luxo. Caprichava no acabamento, mas não no motor de 1,6 litro e na distância entre eixos, mantidos do Corcel II. Embora bem recebido, logo perdeu apelo diante de Chevrolet Monza e VW Santana, mais espaçosos, potentes e com soluções mais atuais. A GM também tiraria o sono da VW em 1989: com o VW Gol GTI recém-lançado com a primeira injeção eletrônica, o Kadett GS chamava os holofotes com estilo avançado e desempenho tão bom quanto o do rival.
A Fiat trazia em 1991 o Tempra, com linhas atraentes que evidenciavam a defasagem de Monza, Santana (redesenhados pouco antes) e Versailles, a versão do Santana para a Ford. Três anos mais tarde a Chevrolet dava o troco na Fiat com o Corsa. Lado a lado, o Uno Mille não podia esconder sua década de vida. O segundo Vectra em 1996 deixava Tempra e Santana com jeito de carros do passado. Em contrapartida, com o Agile de 2009 e a Montana de 2010 a GM escolhia um desenho infeliz e abusava da reciclagem de plataforma e mecânica, o que cobraria seu preço: o hatch foi-se em cinco anos e a picape amarga o último lugar em vendas no segmento.
O fabricante, em geral, escolhe um caminho com ciência das respostas que a concorrência lhe trará: é uma decisão tomada com grande influência da questão comercial
Diante de tantos casos, a pergunta é inevitável: empresas desse porte são realmente pegas de surpresa pela concorrência?
Seguramente não. Mesmo que não se saiba quanto um futuro adversário vai custar, todas estão atentas às manobras das outras. Existem “departamentos de inteligência” cujo trabalho é buscar informações privilegiadas sobre os passos das competidoras. Apesar de todo o empenho, é difícil manter em segredo planos dos quais participam muitos funcionários e fornecedores.
Na maioria dos casos, o fabricante escolhe um caminho com ciência das respostas que a concorrência lhe trará. É claro que a Fiat, com sua grande capacidade de engenharia no Brasil, pode desenvolver um Mobi com os atributos do Kwid ou dotar o Argo de soluções tão sofisticadas quanto as do Polo, assim como a Renault poderia ter feito o Duster e a Oroch mais refinados, a Toyota tinha modelos superiores ao Etios para fazer no País e assim por diante. Trata-se de uma decisão com grande influência da questão comercial.
O cálculo é mais ou menos da seguinte forma. Quais serão os custos de produção de nosso carro com as soluções mais simples (ou antigas) e com as mais refinadas (ou modernas)? Diante dos diferentes preços finais, que patamar de vendas um produto e outro alcançarão? Se a resposta das competidoras for expressiva a ponto de afetar nossas vendas, quanto podemos retirar da margem de lucro para manter nosso produto competitivo? O equilíbrio entre as várias respostas — algumas líquidas e certas, outras apenas estimadas — decide como o projeto será tocado adiante ou se é o caso de alterar os planos.
Esse cálculo sempre dá certo? Claro que não: são muitos os modelos que fracassaram na história de nossa indústria. Afinal, as previsões envolvem questões incertas como a aceitação do público a um desenho ou solução técnica, os preços da concorrência ou mesmo problemas técnicos que podem prejudicar a aceitação do produto. Ainda assim, na maior parte dos casos, quem perde o sono com a chegada de um concorrente tinha como saber que logo precisaria de calmante para voltar a dormir.
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