As medições ficaram mais precisas, mas a evolução dos produtos e do mercado trouxe novas demandas a quem avalia
Das muitas sensações que uma boa leitura pode nos trazer, uma que tenho com frequência, ao consultar as revistas do passado que ofereço na Auto Livraria, é constatar como mudou a forma de uma revista — ou site — testar automóveis nesses 60 anos ou pouco mais de imprensa especializada.
Embora existissem outras revistas do gênero antes, a Quatro Rodas — lançada em agosto de 1960 — representa o marco zero para muitos leitores, por ter sido publicada em grande volume e, até hoje, ser encontrada à venda com variedade e estado aceitável em praticamente todo seu histórico de edições. Assim como o Best Cars 37 anos depois, a revista levou algum tempo para começar a fazer testes: seu primeiro foi o do DKW-Vemag 1000 (ainda não se chamava Belcar), em agosto de 1961.
A ficha técnica informava distância entre eletrodos e capacidade do radiador, mas a matéria não mencionava o preço do carro, como se a análise técnica fosse tudo

Embora tivesse uma só foto em cores — artigo de luxo na época —, aquele primeiro teste era absolutamente completo. Suas 12 páginas incluíam um histórico do motor a dois tempos, explicações sobre a tração dianteira e a roda-livre (peculiaridades do DKW no Brasil de então), medições detalhadas de dimensões internas e ângulos de visibilidade, descrição de cada comando ou instrumento e análise das ferramentas.
Na parte mecânica, a revista media a compressão de cada cilindro e conferia o alinhamento de rodas. Os resultados do teste dinâmico, realizado na Via Dutra, incluíam até os tempos gastos nas mudanças de marcha. E a ficha técnica, de tão detalhada, não deixava de fora a distância entre os eletrodos das velas de ignição ou a capacidade de líquido de arrefecimento. Se não fazia diferença ao comprador, servia de informação ao futuro proprietário.
Apesar de tão vasta, a matéria sequer mencionava o preço do carro, como se a análise técnica fosse tudo o que importasse. E não se tratava de um período de rapidíssima defasagem de valores pela inflação, como seria boa parte da década de 1980 — a inflação oficial naquele ano de 1961 foi de razoáveis 34,7%.
Só 12 anos depois do pioneiro DKW, em agosto de 1973, a Quatro Rodas fazia seu primeiro teste comparativo, que envolvia sete carros acessíveis como Chevrolet Chevette, Ford Corcel, Volkswagen Brasília e, claro, o Fusca — na verdade dois, o 1300 e o 1500. Por uma provável dificuldade logística, a revista não obteve os carros ao mesmo tempo: eles apareciam em fotos separadas. Essa questão, resolvida em pouco tempo para uma grande revista como aquela, permanece um obstáculo para redações pequenas e distantes das capitais como o Best Cars, que até hoje testa os carros em períodos distintos para compor os comparativos.
Do cronômetro ao GPS
Ainda amplo — 10 páginas mais as duas da foto de abertura —, o confronto de 1973 já não trazia muitos dos elementos dos primeiros testes, assim como as avaliações de lançamento da época. Parte dos processos e informações teve de ser abandonada em favor do aproveitamento do tempo dos envolvidos e, claro, do espaço disponível em uma revista que crescera muito em conteúdo.
Nos anos 70 os testes já contavam com um quadro de notas para resumir as opiniões e facilitar comparações — assim como fazemos no site desde o começo, em comparativos, e há algum tempo nas avaliações em 10 itens. Por outro lado, o preço continuava ausente. Só com a estabilização temporária dos preços pelo Plano Cruzado, em 1986, a revista passou a analisar a parte financeira nos testes, algo que se tornou indispensável após o País vencer a inflação com o Plano Real, em 1994.
Os testes ficaram limitados ao essencial — e alguns levaram essa redução a um ponto que desagradou ao leitor, abrindo caminho para outras iniciativas

Os equipamentos de medição também evoluíram. No início eram apenas trenas e cronômetros; depois, a chamada quinta roda, uma espécie de roda de bicicleta atrelada à traseira do carro, que mensurava espaço e velocidade com certa precisão. Na década de 1980 a Quatro Rodas adotou o Correvit, um sensor ótico que representou medições mais precisos. De alguns anos para cá, o advento do sistema de posicionamento global (GPS) por satélite mudou tudo: instrumentos como o VBox e o Race Capture Pro, usado pelo Best Cars, beneficiaram-se dessa tecnologia para trazer precisão e facilidade de uso antes inimagináveis.
Desde a abertura do mercado aos importados, em 1990, o leque de opções se multiplicou. De quatro grandes marcas — Chevrolet, Fiat, Ford e Volkswagen, além das pequenas como Gurgel e Puma — o Brasil passou a cerca de 20 fabricantes e bom número de importadores, que despejam no mercado dezenas de lançamentos todo ano entre novos modelos, versões e atualizações.
O resultado não poderia ser outro: os testes ficaram mais enxutos, mais limitados ao essencial para ajudar o leitor a escolher. Algumas publicações levaram essa redução a um ponto que desagradou a muitos leitores, abrindo caminho para que outras — como certo site pioneiro em seu segmento, lá em 22 de outubro de 1997 — dedicassem espaço a informações detalhadas. Todos, porém, têm tido de lidar com o gradual enxugamento das equipes e da infraestrutura, consequência da concentração da publicidade em duas ou três plataformas, que requer malabarismo das publicações para pagar as contas.
Testar carros, portanto, ficou ao mesmo tempo bem mais fácil e um tanto mais difícil nessas seis décadas. Mais fácil porque não precisamos mais de cronômetros, máquinas de escrever ou câmeras de filme. Mais difícil porque os carros estão cada dia melhores — as diferenças entre eles andam sutis sob vários aspectos —, o mercado mais competitivo, o consumidor mais bem-informado e a verba mais curta. Mesmo diante desses desafios, o Best Cars espera continuar a cumprir esse papel da melhor maneira que estiver a seu alcance.
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