Por que fabricantes ainda custam a falar, na publicidade,
de um tema que ganha tanta importância para o consumidor?
A caminho do trabalho, num dia desses pela manhã, fiquei alguns minutos em um congestionamento que se formara em função de um acidente aparentemente grave, que ocorrera na madrugada em um movimentado cruzamento. Uma motocicleta acertou a lateral de um carro, bem na porta do motorista, na perpendicular. A porta entrou carro adentro; provavelmente o motorista se feriu pelo lado esquerdo, sem falar no motociclista, que se ainda estiver vivo é um homem (ou uma mulher) de sorte.
Na carroceria dilacerada da porta, podia-se ver a barra de proteção lateral que impediu que a motocicleta entrasse por inteiro e atingisse o corpo do motorista. Alguns anos atrás, essas barras de proteção nas portas não eram aplicadas aos carros fabricados no Brasil. Não se faz propaganda delas, mas creio que salvaram a vida daquele motorista.
O carro pode ser uma arma mortal, seja você um suicida, seja você vítima de um motorista irresponsável; nele está envolvido um risco inerente, real
Comparo a publicidade do automóvel à publicidade do cigarro, hoje proibida. Na metade do século passado, fumar era obrigatório. Todas as propagandas focavam apenas o prazer, o glamour, a posição social do fumante. Todos os astros do cinema fumavam. O cigarro é um veneno mortal, mas também dá prazer, é claro. Estendamos esse raciocínio ao extremo no mundo do automóvel: todos temos algum amigo, parente, conhecido, que morreu ou ficou com traumas e lesões causados por acidentes automobilísticos. James Dean, ícone fabricado pela publicidade cinematográfica hollywoodiana, morreu a bordo de um Porsche.
O carro pode ser uma arma mortal, seja você um suicida, seja você vítima de um motorista irresponsável. No produto chamado “automóvel” está envolvido um risco inerente composto por diversas variáveis, mas que é real e, estatisticamente, alto. Pode-se afirmar que o carro (no aspecto do consumo pelas massas) é um produto relativamente novo: tem pouco mais de 100 anos e, em nações como o Brasil, tornou-se acessível há menos de 50. Também considera-se natural que não saibamos lidar direito com ele em sua totalidade.
O milenar cigarro só passou ao status de inimigo da saúde de 10 ou 15 anos para cá. Chegou a ser prescrito como remédio, até. Considerando o mesmo paradigma industrial evolucionista, carros são feitos para transportar, não para bater e matar pessoas, mas até Isaac Newton já sabia que massas de uma tonelada viajando a 100 km/h podem causar grandes transtornos materiais e perdas humanas. A tecnologia evoluiu e hoje é um fato que os carros — em sua maioria, pelo menos — também são feitos, sim, para bater. Todas as áreas da indústria automobilística consideram o acidente como risco inerente e previsto do produto, menos o marketing, com raras exceções.
Romance, não realidade
A publicidade do carro ainda exibe apenas o glamour. As peças têm humor, têm romance, têm velocidade e emoção, mas ainda não têm realidade. Não, não defendo que os anúncios de carros passem a estampar no verso a foto de um acidente com os mortos no asfalto, em analogia à interferência obrigatória do governo na propaganda de cigarros. Mas, em especial no Brasil, há que se aproveitar esse movimento crescente da imprensa que trouxe à tona o perigo inerente da direção e a importância da tecnologia construtiva a favor da segurança passiva.
Entendo que os fabricantes não queiram tocar nesse assunto, por diversas razões. Carros são mitológicos, a sociedade industrial de hoje é a “sociedade do automóvel”, e tratar do assunto cruamente vai tirar do carro esse fetiche. Sem dizer que muitas delas ainda não fabricam produtos realmente seguros. No entanto, eu enxergo nesse momento uma grande oportunidade de surgir uma marca que assuma a liderança ao tratar do assunto de frente, dialogando maduramente com o consumidor.
A Renault foi capaz de trazer à luz um tema crítico e, ao mesmo tempo, diferenciar seu compacto dos concorrentes: avançou-se em verdade, em ética
Há marcas como a Volvo que tratam a segurança ao volante como um atributo claro em seu discurso e nos produtos que comercializam. Nesse caso, a segurança é concretamente um diferencial de posicionamento da marca. Na Europa, a Renault veiculou há pouco um filme onde registrava inúmeras batidas com seu Clio — de frente, de lado, de traseira — para comprovar que o carro era realmente seguro. Um jeito inusitado de tratar de um assunto denso na propaganda. Aqui no Brasil ainda não há essa sinceridade.
Tenho certeza de que usar a publicidade para um diálogo sincero traria excelentes resultados. Uma marca como a Renault, que teve a coragem de submeter seu modelo à propaganda, digamos, “destrutiva”, foi capaz de trazer à luz um tema crítico e, ao mesmo tempo, diferenciar seu compacto dos concorrentes por meio da afirmação direta “meu carro resiste às batidas, protegendo você e sua família”. Avançou-se em verdade, em ética.
Estamos entrando fase na qual a “verdade” nas relações de consumo deverá ser a regra, tal qual ocorreu com a indústria do cigarro. As empresas que fabricam ou vendem carros no Brasil que sejam, de forma comprovada, mais seguros deveriam ter a coragem de assumir uma propaganda na qual a segurança seja o principal diferencial — não o espaço interno, o estilo, a potência ou os equipamentos de conforto. Falta essa coragem, e falta visão ao marketing dos fabricantes que têm em seu portfólio bons produtos nesse quesito. Carro não é cigarro, mas ainda é vendido como se fosse.
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