Com câmbios automáticos antigos, ao descer uma serra na posição Drive, o carro ganhava velocidade e trocava as marchas sem o uso do acelerador, muitas vezes com necessidade de usar a posição Low ou acionar o modo manual para manter velocidade constante e segura. Comenta-se que câmbios automáticos modernos identificam a descida, estabilizando o veículo em determinada marcha e velocidade. Existe mesmo esse dispositivo? Como funciona? Best Cars é uma fonte muito segura.
Paulo César Magalhães Pereira – Nova Iguaçu, RJ
As transmissões automáticas de veículos mais antigos, em geral projetados até a década de 1990, tinham grandes limitações de gerenciamento. As primeiras dotadas de controle eletrônico tinham comportamento parecido com as automáticas de controle mecânico, um tanto rudimentar. Trabalhavam com poucos e limitados dados de entrada para definir qual marcha usar e se o conversor de torque estaria ou não bloqueado.
Esses dados em geral eram velocidade do carro e posição de borboleta, ou seja, pedal do acelerador, pois a borboleta tinha acionamento por cabo. Em alguns casos havia estratégias como não bloquear o conversor de torque até que o liquido de arrefecimento chegasse a certa temperatura ou oferecer um programa esportivo, que alterava a estratégia de trocas de marchas em relação a pedal e velocidade. Mas paravam por aí. Ao desacelerar em uma descida, não retinham a marcha para produzir freio-motor. Em uma subida, passavam à marcha seguinte toda vez que se aliviava o pé do acelerador — daí a necessidade da posição Low citada ou de outras com a mesma finalidade de tirar as marchas mais altas de ação.
Na década de 2000 os fabricantes começaram a adotar as transmissões “inteligentes”, que usavam algoritmos mais complexos na central eletrônica para melhorar dirigibilidade, consumo e desempenho. Os motores deixaram de ser comandados por cabos com relação direta entre pedal e borboleta, passando a trabalhar com controle eletrônico e estratégias mais elaboradas. Uma delas, conhecida como demanda de torque, trabalha da seguinte forma: em uma saída de semáforo o motorista abre certo percentual de curso do acelerador e a central, por meio de um mapa predefinido pela calibração, requisita tanto de torque do motor.
O valor demandado de torque será fruto de inúmeras contas feitas pela central, a partir de dados como temperatura do ar de admissão, pressão atmosférica, tipo e octanagem do combustível, entre outros. Chega-se assim a um percentual de abertura de borboleta — e pressão de turbo, caso haja um — para atingir o torque requisitado. A central sempre tentará a condição mais econômica possível, ou seja, menor abertura de borboleta e menor pressão de turbo possíveis, junto com maior avanço de ignição possível para aquela condição.
Se hoje o gerenciamento de motor trabalha com a estratégia de demanda de torque, não seria sensato que a transmissão continuasse a seguir apenas abertura de pedal e velocidade, apesar de ter havido uma fase de transição em que essa combinação não era muito perfeita. O gerenciamento das trocas de marchas, portanto, deve seguir esse torque proveniente do motor.
Imagine que o veículo está numa rodovia em sexta marcha e começa a subir uma ladeira. Conforme o motorista pressiona mais o pedal do acelerador, o torque do motor aumenta até um ponto em que se atinge o máximo possível para aquela condição (ou, no caso de motores turbo, o máximo torque possível com lambda 1). Se mesmo assim o carro não conseguir manter a velocidade desejada, a transmissão reduz uma marcha. Ou seja, ela sempre tenta manter a rotação mais baixa possível para otimizar consumo.
Contudo, se fosse apenas isso, não seria muito diferente do que as transmissões antigas faziam. Por isso surgiram outras variáveis para tornar as trocas mais corretas e intuitivas. Por exemplo, alguns fabricantes enviavam sinais dos acelerômetros do controle eletrônico de estabilidade para ajudar a central a interpretar se o veículo estava em descida ou subida, podendo somá-los a dados de pedal e velocidade para determinar se deveria manter, reduzir ou avançar uma marcha. Mas tal lógica tem uma falha: como saber se o veículo está vazio, carregado ou mesmo puxando um trailer? Afinal, a capacidade de acelerar e manter velocidade varia muito em função dessa variável.
Foi então que se criou uma estratégia que calcula o quanto de torque o motor está produzindo, em determinada velocidade e com certa posição de pedal, e quanto a velocidade varia com esses parâmetros. Com isso, pode-se até eliminar o sinal do acelerômetro para tal estratégia. Esse valor calculado varia de 0 a 100, em que 0 seria a condição na qual o veículo acelera por si só, como numa descida (podendo passar marchas mais cedo), e 100 a condição de veículo carregado numa subida (quando se retêm marchas, para manter o giro mais alto, e evitam-se trocas ascendentes ao se aliviar o acelerador para fazer uma curva, por exemplo).
Esse número varia constantemente em função do movimento do pedal do acelerador — não apenas de sua posição, mas também, e sobretudo, com qual velocidade se pressiona e se alivia o pedal. Assim, o valor calculado pode ser usado para adaptação ao modo de dirigir: 0 seria o modo mais suave e econômico e 100 o modo mais esportivo de condução, com acelerações bruscas. Esse parâmetro sempre começa com números baixos, com intenção de economia, mas aumenta a cada movimento brusco do acelerador. Caso o motorista pare de movimentar bruscamente o pedal, como ao conduzir em uma reta a velocidade constante, os números voltam a cair, uma vez que a condução esportiva foi encerrada.
Também é comum ver o valor base e inicial de 50 quando se seleciona o modo esportivo da transmissão, que retém mais as marchas e faz o motor trabalhar com maior rotação. É comum que esse modo também altere a atuação do acelerador. Por exemplo, em modo normal para certa condição, 30% de pedal significariam 10 m.kgf de torque, mas no modo esportivo teríamos 10 m.kgf com apenas 20% de pedal e 13 m.kgf com aqueles 30%. Claro que com 100% de pedal tudo se iguala nos dois modos, pois o motorista busca o máximo de desempenho da transmissão e do motor. Portando, seguindo esse parâmetro de 0 a 100, a transmissão consegue tanto se adaptar ao modo de condução como a descidas e subidas.
Não podemos esquecer que, caso o sistema reconheça que o pedal foi fechado (sinal 0%) e a velocidade não diminui ou mesmo aumenta, pode entrar em estratégia de descida e começar a reter marchas ou mesmo reduzir. É também comum hoje as transmissões receberem o sinal da pressão da linha de freio, proveniente do sistema antitravamento (ABS), e usá-lo para definir o quanto reter ou reduzir as marchas, de modo a produzir mais freio-motor e auxiliar os freios. Há uma estratégia parecida com a do acelerador, só que inversa: se há tal pressão na linha, deve-se esperar tanto de desaceleração. Caso seja diferente, determina-se que o veículo está em descida e/ou carregado, podendo-se reduzir marchas para auxiliar os freios.
Concluindo, a mágica de tudo isso não está em dispositivos, mas na capacidade de processar diversos parâmetros pelas centrais eletrônicas, em função de variadas condições, e de atuar de maneira correta e intuitiva no modo de condução. Pode-se dizer que a inteligência artificial chegou há algum tempo aos sistemas de controle do carro. No entanto, de nada adianta toda essa capacidade eletrônica se não houver bons calibradores desses sistemas na fase de desenvolvimento dos veículos. Tanto que vemos falhas de calibração com alguma frequência — o Best Cars sempre as aponta nas avaliações —, não oriundas de limitações eletrônicas ou mecânicas, mas de “massa cinzenta” daquela pecinha diante do volante com um computador ao lado na hora do acerto desses sistemas.
Texto: Felipe Hoffmann – Fotos: divulgação