Depois de seis anos de baixa, há depressão e não recessão: por isso, as vendas não se recuperarão em “V”
A intenção desta coluna nunca foi apresentar estatísticas de mercado. Para isso, os sítios oficiais das entidades de classe trazem dados em profusão. O que interessa aqui é escarafunchar causas e consequências, algumas baseadas no Pensamento Econômico, outras na História. Muitos jornalistas têm falado em recuperação em “V”, parafraseando o ministro da Economia. Para comprovar essa tendência, usam dados do mercado de automóveis. Será que eles são os melhores para indicar esse tipo de tendência?
Antes de falar em recuperação em “V”, é preciso lembrar que o conceito só se aplica às recessões e não às depressões. Desde o início do século passado que economistas de esquerda e de direita estudam os ciclos econômicos. De direita, os principais pensadores foram o britânico John Maynard Keynes (1883-1946) e o checo Joseph Schumpeter (1883-1850); de esquerda, os principais foram o polonês Michal Kalecki (1899-1970) e o russo Nikolai Kondratiev (1892-1938), este último morto por Stalin aos 46 anos, pois provou que mesmo as economias planejadas estariam sujeitas a períodos de expansão e de recessão.
Para que haja uma recuperação em “V”, é preciso que seja uma recessão, que nenhum fato significativo tenha ocorrido para alterar as relações econômicas entre as pessoas
As recessões, assim como as estações do ano, mesmo que não coincidam com elas, fazem parte da natureza do comportamento humano em todas as suas atividades. As depressões, ao contrário, são catastróficas. Elas costumam ser associadas a percalços como o estouro de uma bolha, uma pandemia, uma guerra, um terremoto de proporções bíblicas, entre outras hecatombes. Elas pressupõem destruição de empresas e empregos, quando não de recursos naturais, ou mesmo de parte do aparelho público.
As recessões, por sua vez, são oriundas da própria atividade econômica que é cíclica, atividade a atividade. A criação de gado, por exemplo, tem um ciclo de cinco anos, mais ou menos o mesmo tempo para os ciclos das commodities em geral. Só quando os ciclos setoriais entram em fase num ciclo de baixa, o resultado é uma recessão. Os economistas mais marqueteiros atribuem letras como “V” para quedas bruscas com rápido retorno ao nível anterior ou mais alto; “W”, quando há um breve refresco seguido de nova queda; “U”, quando o período de baixa se prolonga por período suportável, voltando ao normal em seguida; e “L”, quando a queda põe a economia em patamar mais baixo por muito tempo.
Para as recessões, os governos aplicam medidas anticíclicas como baixar a taxa de juros e aumentar gastos, que são insuficientes para sanar depressões. Essas letrinhas atribuídas à recuperação econômica não passam de um reducionismo inaceitável, porque a História nunca se repete e as explicações não passam de profecias do passado, ou, em retórica, uma espécie de tautologia, ou ainda, o que é porque não poderia ser de outra forma. Filosófico demais? Talvez. De qualquer forma, essas definições explicam muito pouco e servem como marketing para criar expectativas favoráveis a uma dada política econômica.
Para que haja uma recuperação em “V”, é preciso que seja uma recessão, que nenhuma alteração significativa tenha ocorrido. Em economês, é preciso que nenhuma externalidade seja capaz de alterar as relações econômicas entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Nessa última categoria entra a indústria automobilística.
Outro alfabeto
Mudanças naturais já vinham ocorrendo, como a servicificação do uso do automóvel, a racionalização da mobilidade urbana e a concentração mundial da produção de veículos. Vendas como as de 2013 e 2014 não se repetiram e estamos falando de seis anos de baixa. Para equiparar-se a uma praga do Egito, falta um ano só. A produção nacional de carros novos atende 28% de veículos para PCD (pessoas com deficiência), 32% para frotas e somente 40% entre consumo individual e exportações. Mesmo assim, há quem diga que estamos presenciando uma recuperação em “V”.
Pode até ser um “V”, mas em qualquer outro alfabeto que não o latino. Está mais para um “W”, posto que se experimentou uma queda brutal entre 2015 e 2016, um vigoroso crescimento em 2017 (25%, segundo a Anfavea, associação dos fabricantes), uma suave retomada em 2018, uma estagnação em 2019 (+2%, segundo a mesma entidade) e 2020 já começara com uma queda, mesmo antes da pandemia, que só se reconheceu em 26 de março (-3% entre janeiro e fevereiro e -21% em março, segundo a Anfavea).
Está mais para um “W”: queda brutal entre 2015 e 2016, vigoroso crescimento em 2017, suave retomada em 2018, estagnação em 2019 e este ano começara com queda
Assim, uma retomada de 4,4% em setembro não deve ser motivo para festas, mesmo porque a percentagem parte de número extremamente baixo. Aritmeticamente, se a produção for 0 e passar a 1, o crescimento percentual tenderá ao infinito e, em termos práticos, não significa grande coisa.
Por outro lado, nossa indústria está enormemente internacionalizada e a queda do valor do real perante o dólar força preços para cima, enquanto o brasileiro médio empobrece. Ao mesmo tempo, a concentração planetária da produção de veículos, se não fecha, reduz em muito o acesso ao mercado internacional para nossa indústria.
Se considerarmos somente o setor automobilístico, a recuperação está mais para um símbolo de raiz quadrada meio torto. O termo, no entanto, não se refere à recuperação setorial, mas à da economia como um todo. Ou seja, o mercado de automóveis é função do estado da economia nacional em um dado ponto e não vice-versa, por mais significativo que o setor seja. Para que nossa indústria de bens de consumo durável, em que se enquadram os veículos de passeio, volte ao patamar de 2013 antes de 2030, o governo e os demais agentes econômicos precisam reconhecer que o Brasil está em depressão, não cabendo falar em recuperação em “V”.
Por causa disso, será preciso adotarem-se medidas muito diferentes das ortodoxas anunciadas até agora, como financiamento do consumidor externo nos mesmos termos que o interno, internalização da engenharia e, antes de tudo, dar transparência aos números das empresas aqui instaladas para que elas se tornem atrativas ao investimento externo e interno, via fundos de investimento que detêm 60% dos recursos mundiais para investir.
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