Quem disse que carro para ser bom tem de ser
preto ou prata, ter quatro portas, “trio”, ar e direção?
Faz um bom tempo que escutei essa história, ainda nos anos 90, quando a Citroën importava seus carros e, como muitos outros estrangeiros, padecia de uma fama ruim qualquer, mais relacionada ao preconceito em si que à manutenção de seus modelos. O dono da empresa onde trabalhava meu amigo mais próximo exibia, feliz, seu recém-comprado Citroën ZX. Foi repreendido pelo sócio: “Compra esses carros aí e depois não consegue mais revender…”. Ele retrucou: “Compro carros para usar, não para revender”.
Gostei da atitude. Parece que nos transformamos em consumidores guiados por uma voz anônima travestida de bom senso negocial. Essa voz é apócrifa; uma espécie de sujeito indeterminado. “Disseram”, “é normal que”, “é comum”, “todo mundo tem assim”, “todo mundo faz assim”. Onde isso está escrito? Por que tem que ser assim? Quem é esse “todo mundo”?
Um comportamento de cardume: se você é o único diferente, pode se sentir ameaçado; portanto, pertença ao batalhão que não ganha, mas não perde (não perde?)
Não há fundamento em nada disso. São leis que o mercado não criou e que cumprimos sem saber por quê. Compro carro com meu dinheiro, mas quem me diz o que fazer é um outrem. Paradoxo: como as pesquisas de cores preferidas apontam para um futuro colorido nas ruas, mas todos os carros vendidos são da bendita trindade preto-branco-prata e seus subderivados? É porque “tem que ser” assim. É porque carro “tem que ser” preto ou prata, “senão é difícil de vender”. Quem já lhe disse isso? Aposto que muita gente. Onde isso está escrito? Em lugar nenhum.
Todos querem personalizar seus celulares, colam adesivos, compram capinhas coloridas, não querem ser iguais; mas ainda compram seus carros baseados numa legislação tácita que determina quais as cores, modelos e opcionais classificados como o “é melhor ter”. O carro é a única coisa que parece possuir um manto de força contra a personalização.
É ridículo, mas você já pensou que há modelos à venda que permitem mais de mil combinações de cores, motores e opcionais, mas são vendidos, em sua maioria, com as mesmas coisas embarcadas e nas mesmas cores? Vivemos na era do “produto pessoal”, mas ainda compramos carros como se o revendedor fosse Henry Ford, o pai da estandardização — aquele que oferecia seu Modelo T em qualquer cor desejada, desde que fosse preta.
Duas portas, sem ar
Meu exemplo pessoal: sou alérgico à beça. Não tolero ar seco demais nem em temperaturas muito baixas, o que me faz repelir ar-condicionado no automóvel. Entendo plenamente todos os mitos (uns mais procedentes que outros) inventados para que o ar se tornasse um dos opcionais da linha do “tem que ter”. Moro na capital paulista, que salvo nos dias mais quentes — que totalizam algo como um terço do ano — é um local de temperatura amena.
Assim, meus carros até três ou quatro anos atrás não tinham ar-condicionado, por escolha. Apenas o aquecedor, meu preferido para o frio. Não pago R$ 3 mil ou mais por algo que uso duas ou três vezes por ano, preferindo conduzir a verba para opcionais que valorizo mais ou para a compra de um carro superior. Na época era solteiro; logo, saí da concessionária com um carro de duas portas, vermelho e sem ar-condicionado. Aquele era o carro que eu queria e me satisfez plenamente. Todos me disseram: “Esse seu carro é micado”, “Quando precisar vender vão te pagar pouco”.
Casei-me pouco depois e não pude mais comprar carro com minha própria e solitária opinião — os casados saberão do que falo. Logo passei a ser usuário do carro preto e quatro-portas com ar-condicionado. Sou mais um na massa indistinta do vaivém. Todos os carros são ortodoxamente semelhantes. Um comportamento de cardume: se você é o único diferente, pode se sentir ameaçado; portanto, esteja na maioria e pertença ao batalhão que não ganha, mas não perde (não perde?).
Todos querem personalizar seus celulares, mas ainda compram seus carros baseados numa legislação tácita que determina cores, modelos e opcionais
Resumo: quando fui vender o carro preto, tão querido pelo mercado, pagaram-me miseravelmente tão pouco quanto por meu antigo mico vermelho. De que adiantou-me ter um carro vendável? Logo eu, que gosto de carros, valorizo detalhes, amo as diferenças. Perdi dinheiro do mesmo jeito e, de quebra, perdi dois anos de minha satisfação automotora, gastando mais num carro que, pelo ar-condicionado e as duas portas a mais, era mais pesado e gastava mais combustível. E satisfação, sim, não tem preço que pague.
Muita gente seria mais feliz e teria mais dinheiro no bolso se comprasse o carro que realmente a satisfizesse, no âmbito racional e no emocional. O problema não é falta de produto nem de opção — é falta de atitude. Um conselho: carro é uma grande perda de dinheiro; logo, deve ser encarado sempre que possível como um prazer, jamais como investimento ou coisa que o valha. E todo prazer deve trazer a satisfação do gosto como objetivo, não o cumprimento de regras, como cor, opcionais, marca ideal.
É uma comparação grosseira, mas pode ser útil: carro é mesmo como o vinho. O bom é aquele que você gosta, não aquele que o especialista recomendou ou o garçom sugeriu. Compre carro para usar, não para revender. E tenha bom senso, sempre. Não vá comprar um Hummer amarelo só porque é seu preferido e vir, depois, colocar a culpa no colunista libertino.
Para encerrar, lembra-se de quando carro quatro-portas no Brasil era mico? A ponto da Ford (na era Autolatina) acreditar tanto no dito popular que criou uma versão de três portas da Volkswagen Quantum e chamou de Royale. Uma perua de três portas: dá para acreditar na antítese? A prova de que regra não é equivalente a lógica.
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