Vejo muitos comentários acerca da detonação que tem acometido os veículos flex, quando rodam com gasolina comum quando em alta carga e baixa rotação. Vejo alguns dizerem que não há problema, já que o sistema de gerenciamento do motor detecta a situação precocemente e atrasa o ponto de ignição, e vejo outros dizerem que isso não é admissível. Comigo, em um carro a concessionária alegou que era carbonização do motor, num veículo com 20 mil km e que havia rodado somente com álcool. Em outro, aos 2 mil km, a concessionária recomendou a mistura de um pouco de etanol à gasolina comum. Achei a solução paliativa, inócua e dissimulada, pois entendo que o motor deveria funcionar perfeitamente com gasolina. Quem está certo neste ponto? Realmente não há problema em algumas “batidas de pino”? O Best Cars é o melhor site do gênero do país.
Evandro Semighini – Ribeirão Preto, SP
Sua dúvida não é rara nem restrita ao mercado brasileiro. Apesar de muitos países não terem o álcool puro para abastecer (alguns oferecem E85, ou seja, 85% de álcool e 15% de gasolina), muitos dispõem de gasolinas de diferentes octanagens. Claro que o consumidor leigo escolhe a gasolina mais barata, de baixa octanagem, supondo que as superiores só sirvam para carros de alto desempenho ou mesmo sejam uma jogada de marketing. O resultado chega a ser pior que o visto no Brasil: veículos modernos, desenvolvidos para rodar com gasolina pura, “batendo pino” (detonação) nos dias de calor.
No Brasil usam-se taxas de compressão maiores em vários motores flexíveis e a gasolina tem alto teor de álcool (hoje, 27% na comum ou aditivada e 25% nas do tipo premium). Isso é bom para octanagem e, em consequência, para a eficiência energética do motor, mas aumenta o risco de detonação. Não podemos esquecer que muitos postos vendem gasolina “batizada” ou mesmo velha, com baixa octanagem (vide consulta sobre carro parado), o que acentua a tendência.
Grosso modo, não levando em conta o combustível, o motivo mais comum de “batida de pino” é mesmo a estratégia de avanço de ignição. No recente artigo técnico sobre motores explicamos a diferença entre o avanço de ponto de ignição MBT e o BDL. O MBT é o ponto no qual o motor produz o máximo de torque possível para aquela condição de carga e rotação. Quanto maior a taxa de compressão e menor a octanagem do combustível, porém, maior a chance de detonação nesse ponto ideal, o que obriga a central eletrônica a atrasar o ponto para evitar que o fenômeno continue. Há diversas estratégias de como a central determina o ponto, ou seja, o ajuste para o tempo correto da centelha da vela para obter o máximo de eficiência.
Nos tempos do carburador e do distribuidor, o avanço de ignição tinha uma enorme margem de segurança, pois o sistema era incapaz de se autocorrigir: não havia fatores de correção nem sensor de detonação. Com o advento da injeção eletrônica e sua integração à ignição, pôde-se criar uma tabela que tem em um eixo a rotação e no outro a carga do motor (em geral, pressão no coletor de admissão). O resultado é um gráfico tridimensional (veja exemplo na figura).
Criam-se então duas tabelas, uma delas com o avanço de ignição MBT (maiores torque e eficiência possíveis) e outra com o avanço BDL (avanço máximo do ponto antes de ocorrer detonação). Essas tabelas, usadas até hoje e conhecidas como mapas de ignição, são específicas para cada motor e cada combustível que ele pode usar. Nos flexíveis usam-se até seis mapas: dois para gasolina (MBT e BDL), dois para mistura com 50% de cada combustível e dois para álcool. Caso haja uma mistura diferente entre os dois combustíveis, o sistema faz uma interpolação entre os mapas. Com isso, pode-se atribuir o melhor avanço do ponto de ignição em diversas condições de uso do motor, tornando-o mais econômico, potente e elástico.
É possível ainda atribuir dados de entrada que acrescem ou diminuem os valores dos mapas de ignição, como as temperaturas do líquido de arrefecimento, do ar de admissão (crucial, uma vez que ar mais quente aumenta o risco de detonação) e até mesmo do catalisador, que abaixo de 300°C não consegue converter os gases de escapamento. Neste último caso o sistema atrasa o ponto de ignição (reduzindo a eficiência do motor) para que aumente a temperatura dos gases e se aqueça o catalisador o mais rápido possível. Esse é o principal motivo do consumo mais alto de combustível enquanto o motor está frio (leia mais sobre emissões e estratégias para sua redução).
Outro avanço importante — sem trocadilhos — foi o sensor de detonação, que consegue detectar se ela está ocorrendo, de forma a proteger o motor. Se há detonação, a central usa uma estratégia para atrasar o ponto de ignição de imediato a fim de eliminar o perigoso fenômeno. Se ao seguir o mapa de ignição predefinido e os fatores de correção ainda houver detonação, o sistema atrasa o ponto de ignição para proteger o motor. Em centrais mais modernas o sistema guarda na memória para que, caso aquela condição se repeta, o ponto recém-definido seja atrasado antes mesmo de ocorrer a detonação. Por isso em alguns carros, quando se abastece com gasolina de baixa octanagem, nota-se a detonação nos primeiros quarteirões e depois não mais.
Por outro lado, o sistemas modernos também podem adiantar o ponto de ignição ao perceber que não há detonação e que se está em condição na qual o ponto de ignição BDL seja menor que o MBT. Para entender, pense em um motor flexível de taxa de compressão alta (acima de 12:1) usando gasolina em dia de calor, a 2.000 rpm, com 50% de abertura de acelerador. É provável que o motor não possa trabalhar com o avanço do ponto MBT nessas condições. Assim, ele recorre à tabela de avanço BDL com os fatores de correção e adota um ponto mais atrasado.
Contudo, o sensor de detonação já não reconhece nenhuma detonação: o sistema então tenta adiantar o ponto aos poucos e, caso apareça detonação, volta ao valor prévio à sua ocorrência. Agora imagine que o motorista pare e abasteça com gasolina de alta octanagem (Podium, por exemplo): o sistema reconhece o uso de gasolina, por meio da sonda lambda, e começa a perceber que está livre de detonação mesmo ao chegar mais perto do valor do avanço MBT. Assim, ele passa a manter estes valores mais altos na memória, aumentando o torque e a eficiência do motor — o que tentará até atingir o valor do avanço MBT.
Cabe lembrar que cada fabricante adota estratégias diferentes nos avanços de ponto de ignição, assim como pesos diferentes nos fatores que fazem atrasar ou adiantar o ponto. A maneira mais fácil seria adotar um mapa de ignição mais ousado (maiores valores) junto de fatores de correção não tão atuantes, para que sempre se tenha o avanço do ponto BDL o mais perto possível do MBT, com benefícios ao torque e ao consumo. Caso ocorra detonação, o sistema se corrige. No entanto, apesar de o sensor detectar detonações antes mesmo que as possamos ouvir, há condições tão extremas e rápidas que se ouve a detonação a alguns metros do carro.
Digamos que essa estratégia não seja a mais aconselhável. Apesar de algumas detonações não ocasionarem quebra do motor, sobretudo em baixa rotação, a longo prazo isso pode diminuir sua vida útil. Por outro lado, há motoristas que reclamam de veículos flexíveis, usando gasolina, com resposta lenta do motor em retomadas (situação com maior chance de detonação): a culpa é dos fatores de correção muito ousados na atuação, que levam a atrasar o ponto de forma excessiva. Ou seja, o ideal não é oito nem 80, mas o equilíbrio ideal entre as duas estratégias.
Nos casos que você vivenciou, em algumas situações, pode-se ter alguma detonação pela tentativa de buscar o avanço mais próximo de MBT — ou mesmo por um combustível de baixa qualidade. A desculpa de que o motor está carbonizado acaba se tornando corriqueira, além de ser mais próxima do universo dos mecânicos sem experiência com estratégias de avanço de ignição. De fato, um motor carbonizado (improvável com apenas 20.000 km) fica com maior taxa de compressão, pois a camada de carbono se acumula no topo dos pistões. E taxa maior significa a necessidade de menor avanço do ponto, o que pode fugir ao alcance do mapa e dos fatores de correção, mas sempre se estará protegido pelo sensor de detonação.
O problema se torna preocupante quando o motor começa a detonar e não para, até o motorista mudar a condição de uso (rotação, posição de pedal). Nesse caso, o sistema não está conseguindo atrasar o ponto o suficiente, algo mais comum em veículos antigos. Misturar um pouco de álcool à gasolina, em motor flexível, aumenta sua octanagem e diminui a ocorrência de detonação (nos anos 60 e 70 era comum misturar as gasolinas comum e “azul”, de maior octanagem, até que ela cessasse). Outra opção é a gasolina premium ou Podium: embora mais cara, em muitos casos se aumenta a eficiência a ponto de compensar o maior preço por litro por meio da redução do consumo.
Texto: Felipe Hoffmann